Não me lembro de alguma vez ter lido algum texto do André S. Silva e não houve nada neste Xibalba Sonha com o Oeste (bibliografia), nem algum maneirismo temático, nem nenhum tique estilístico, que me tenha feito lembrar outras histórias. Mas isso não impediu que eu tivesse saído desta leitura bem impressionado.
Esta noveleta não é perfeita. Há nela algumas falhas a nível do texto, que me pareceram cair mais no capítulo das gralhas do que no das falhas propriamente ditas (palavras em falta, palavras repetidas, sobretudo coisas dessas) e há também uma certa aura de capítulo de história mais extensa, pontas soltas que assim permanecem ao concluir a leitura. Não daquelas pontas soltas que pouca relevância têm, mas das que são fulcrais no contexto do universo ficcional criado. Pior: ao longo do texto vai sendo construída uma tensão que não se resolve quando ele chega ao fim. E há também alguns pontos do enredo em que a narrativa é apressada com o recurso a técnicas que se aproximam talvez demasiado do deus ex machina.
Mas a verdade é que a tensão é muito bem construída, com uma prosa de bom ritmo e agradável, personagens quase sempre credíveis e com alguma tridimensionalidade (em especial a protagonista). E acima de tudo, um universo ficcional muitíssimo interessante e cheio de potencial para desenvolvimento futuro.
A história desenrola-se no Rio de Janeiro. Ou melhor, na Guanabara, cidade-estado situada no local onde no nosso universo existe o Rio. É que neste universo ficcional criado pelo André Silva uma catástrofe qualquer parece ter-se abatido sobre a Europa, e como consequência não houve portugueses que confundissem a baía de Guanabara com um rio no dia 1 de janeiro de 1502. Sem europeus a baralharem as cartas, a potência principal parece ser um estado oriental (ou, para os guanabarenses, ocidental) chamado Zonguá, isto é, o nome chinês da China, e a Guanabara é uma cidade-estado num continente (ou em dois, pois os zonguanenses chegaram às nossas Américas pelo estreito de Bering — que naturalmente tem outro nome — e por isso não estamos apenas a falar da nossa América do Sul mas de ambas) que está em grande medida sob a influência mais ou menos direta, mais ou menos marcial, de Zonguá. Incluindo as potências subjugadas das nossas Américas, os grandes impérios indígenas, dos maias aos astecas. A Guanabara, de resto, situa-se no espaço cultural destes últimos.
A protagonista é a filha de um dissidente, um cientista que teria desenvolvido pesquisas que o governo considerou subversivas e por isso foi desterrado para muito longe. Pesquisas sobre o que está no fulcro da divergência entre o nosso universo e esta alternativa que André Silva aqui cria, um fenómeno energético qualquer, nunca explicado e envolto em mitologia, que teria arrasado a Europa ao mesmo tempo que criava as condições para o desenvolvimento de civilizações energeticamente sustentáveis nas regiões que não foram demasiado tocadas pela catástrofe. Mas claro: qualquer situação repressiva, mesmo que subtilmente, gera os seus dissidentes, e quando estes se cruzam com a protagonista e lhe despertam a curiosidade com o que poderá estar a acontecer e sobretudo com a forma como os acontecimentos se relacionam com o pai há muito desaparecido, as coisas precipitam-se.
Este é um exemplo bastante sólido de história alternativa, significativamente melhor, apesar das falhas, do que os que o antecedem e baseado num universo ficcional que certamente será desenvolvido em outras ficções.
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