Na minha constante busca por literatura que possa ser enquadrada nalguma das vertentes do fantástico, em que mergulhei desde que me meti a fazer o Bibliowiki, por vezes pego em livros e textos em que antes disso nunca pegaria. Exemplo disso é esta obra de Manuel Ferreira, um ensaio sobre as Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa publicado logo a seguir às independências dos PALOP, em 1977.
Li estes dois livros com o fito quase exclusivo de descobrir o que haveria de fantástico nessas literaturas, sabendo de antemão que não encontraria neles nem Agualusa nem Mia Couto nem nenhum dos outros autores africanos mais ou menos modernos que têm vindo a lidar com o fantástico, de uma forma ou de outra, nas décadas mais recentes. Falta-me a competência para analisar esta obra segundo o contexto em que foi produzida, o do ensaio académico, e portanto nem começarei a tentar fazê-lo. O que aqui irão encontrar é apenas a impressão com que fiquei no contexto do objetivo que me levou à leitura e nada mais do que isso.
E essa impressão não foi boa; terminei a leitura muito desapontado.
É que de fantástico quase não se encontra aqui nem sinal. A exceção é um par de autores de Cabo Verde, que parece terem tido alguma atividade dentro do género e por isso foram os únicos a fazer com que esta leitura tenha valido a pena. Porque, de resto, o deserto é total.
E não sei porquê. Não sei eles foram de facto os únicos a cultivar essa abordagem à literatura, se existiram outros mas a obra os esquece. É que Manuel Ferreira quase poderia ter intitulado esta sua obra "Poesias Africanas de Expressão Portuguesa", de tal forma se concentra na poesia em detrimento da prosa. Pode ser que fosse a poesia a forma literária predominante naqueles territórios e por isso se justifique essa abordagem, mas a verdade é que enquanto os poetas se veem extensamente analisados, incluindo até republicação de poemas, inteiros ou em excerto, quando chega a hora de falar da prosa, esta é despachada em dois tempos, quase sem citações ou exemplos.
E existe também uma outra questão que me faz ter saído desta leitura sem certezas quanto à existência ou inexistência de fantástico literário nos países africanos de expressão portuguesa. É que este livro tem uma abordagem marcadamente ideológica à questão sobre o que é, ao certo, "literatura africana". Manuel Ferreira parte do princípio, inteiramente compreensível, de resto, de que só é realmente africana a literatura que protesta contra o colonialismo ou a dominação do europeu, pondo portanto de parte toda a literatura (ou quase) que possa ter sido produzida em África antes das independências mas não se enraíze nessa luta pela autodeterminação e/ou dignidade dos povos africanos. Esta não seria literatura africana mas sim literatura colonial, animal de outra espécie.
É uma abordagem que tem a sua razão de ser, mas também tem um problema: pode levar a ignorar obras que não são explícitas nessas ideias mas onde elas existem de uma forma implícita ou discreta. E, sem saber se assim é ou não, parece-me plausível que algumas dessas obras possam ser fantásticas. Porquê? Porque tanto na Europa como nas Américas existiu e continua a existir uma corrente nos nacionalismos literários que leva os autores em busca de tradições e lendas dos respetivos povos para as elevar a literatura e contribuir assim para a dignificação das suas culturas ancestrais. Não será uma forma explícita de combater opressões estrangeiras, não será literatura de intervenção, mas é uma forma de dizer "nós estamos aqui, já cá estávamos antes, criámos estas histórias e temos orgulho delas". Ora, sendo as lendas e as tradições o que são, fácil se torna perceber por que motivo muita da literatura que daí resulta é fantástica (em sentido lato, não todoroviano).
É possível que em África não se tenha dado o mesmo fenómeno? É. África tem, mais agudamente do que outros territórios colonizados, o problema de ter fronteiras traçadas pelas potências coloniais em completo desrespeito pelos povos autóctones, o que resulta num conflito latente entre as nações modernas, pós-coloniais e culturalmente mestiças, e os povos originais. É possível que a recuperação das tradições antigas seja vista como problemática por poder despertar velhos fantasmas em nações multiétnicas e por isso mesmo frágeis, o que já se deveria fazer sentir na época colonial entre as elites capazes de produzir literatura em português. Portanto sim, é possível que isto tenha levado os autores a ignorar as lendas que se contavam em volta das fogueiras.
Mas, francamente, não me parece provável. O encanto dessas histórias parece-me demasiado forte para poderem ser ignoradas. A verdade completa, porém, é que não sei se assim é ou não. Fica a desconfiança, mas esta é apenas um achismo. O que é certo é que neste livro Manuel Ferreira não faz qualquer referência a isso, e para já tenho de me contentar com esse facto.
O que achei do livro? Bem, acho-o muito interessante para quem estiver interessado nas poesias africanas até às independências, significativamente menos para quem tiver interesse pelas respetivas prosas e quase nada para os que se interessam por literatura fantástica. Eu aprendi algumas coisas mas muito menos do que gostaria de ter aprendido. E saí da leitura cheio de dúvidas.
Este livro foi disponibilizado gratuitamente pelo Instituto Camões e pode ser descarregado, em PDF, aqui.
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