quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Lloyd Biggle Jr.: Maneira Doida de Lecionar

Uma das coisas a que mais graça sempre achei naquela conversa habitual de "isso é só ficção científica" proferida por quem pretende dizer que a ideia é coisa descabelada, sem pés nem cabeça, que só mesmo num livro de FC poderia encontrar cabimento, é lembrar-me das milhentas ocasiões em que coisas que eram "só ficção científica" se transformaram passado algum tempo em realidade pura e dura, apanhando, invariavelmente, as pessoas que assim falam completamente de surpresa. Ainda recentemente tivemos uma surpresa desse género, englobando o planeta inteiro, quando a pandemia obrigou a medidas drásticas de contenção. E no entanto, ninguém parece ter-se dado conta de quão insensata essa conversa de "é só FC" realmente é, nem o género pareceu ter ganho mais um pouco de respeito ao ver-se repentinamente no centro da realidade quotidiana de um planeta inteiro. Acho isto francamente bizarro. Mas é só mais uma bizarria no meio de tantas outras.

Também sempre achei muita graça a uma outra conversa que não é por ser desmentida, literalmente, todos os dias que deixa de ressurgir com regularidade: a de que a arte (ou esse seu ramo que é a ficção científica) e a política não se misturam. Falo, evidentemente, da política propriamente dita, não do seu sucedâneo falsificado que é a politiquice partidária: a discussão sobre o que poderá ser melhor para a vida em sociedade destes macacos nus que somos.

Vem isto a propósito, obviamente, desta Maneira Doida de Lecionar (bibliografia), uma noveleta de ficção científica que Lloyd Biggle Jr. publicou no já longínquo ano de 1966. É uma daquelas histórias cautelares, desde sempre abundantes na FC, que pretendem alertar para os potenciais problemas que poderão surgir caso a sociedade futura decida seguir um determinado rumo. Que rumo? É aqui que vocês sorriem um pouco: o rumo é a educação das crianças à distância; elas em casa, os professores num estúdio de televisão.

Faz lembrar alguma coisa?

Pois é, passámos por isso durante este último ano de pandemia, e se calhar vamos voltar a passar durante o ano que começou há pouco, embora de forma mais limitada. E sim, parte dos efeitos para que Biggle alerta verificam-se, embora as coisas não sejam tão extremas como ele as apresenta. A história de Biggle insere-se naquela corrente, que já existe na FC pelo menos desde que ela chegou à modernidade com Frankenstein, que alerta contra a desumanização que pode advir da mecanização da sociedade, e entretanto aprendemos que os efeitos perversos das máquinas têm mais a ver com a revelação do pior que existe na humanidade do que com a desumanização propriamente dita.

A conjuntura deu a esta história um interesse acrescido; fazendo um pequeno exercício de imaginação e pensando em qual seria a minha opinião caso a tivesse lido antes da pandemia, concluo que não gostaria muito. Não me parece que esta seja uma história realmente boa. Biggle arranja uma professora "à antiga", que chega à Terra depois de uma carreira inteira a lecionar no sistema educativo de um Marte colonizado, indo deparar com um sistema completamente diferente daquele com que estava habituada. É um choque cultural dos grandes, mas claro que vai conseguir, sozinha, mudar tudo. Essa é uma das fragilidades da noveleta, mas não a única; há nela também uma certa superficialidade e simplismo no tratamento daquilo que envolve a educação, que pouco ultrapassa a dicotomia máquinas e televisão = mau, professores de carne e osso em sala de aula = bom. Mas sendo a conjuntura a que é, a leitura tornou-se interessante.

É das tais coisas: a leitura nunca se faz num vácuo e é sempre influenciada por aquilo que a rodeia, mesmo quando não nos damos conta disso.

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