domingo, 3 de outubro de 2021

João Barreiros: A Arder Caíram os Anjos

E no princípio foi A Arder Caíram os Anjos (bibliografia).

Vá, imagino-vos aí a dizer, não sejas enigmático. Desembucha lá. Que raio queres tu dizer com essa bizarra referência bíblica? Algo a ver com os anjos do título?

Sim, mas não. É que esta é a noveleta que deu origem a todo este Terrarium. Existe na anglosfera um termo de que não há tradução estabelecida em português, fix-up novel (João Barreiros e Luís Filipe Silva chamam-lhe romance em mosaicos, eu tenho preferido romance-colagem), isto é, um romance feito pelo menos parcialmente a partir de textos com existência autónoma anterior, e esta noveleta de João Barreiros foi o texto, publicado originalmente no Brasil e aí premiado, que levou ao desenvolvimento deste romance-colagem e à parceria com o seu coautor.

E é um texto "à Barreiros". Quem não conhece ficou na mesma, quem conhece sabe perfeitamente do que estou a falar. Pancadaria a rodos, montes de coisas desfeitas "com o máximo prejuízo", mas também uma construção de ambiente muito sólida servida por uma imaginação invejável, um protagonista completamente ultrapassado pelos acontecimentos mas capaz de se desenvencilhar dos escolhos aparentemente intransponíveis que o universo lhe põe no caminho, sem saber como nem porquê, e raízes profundamente inseridas no imaginário popular.

Aqui, a parte do imaginário popular a que Barreiros faz referência é muito cristã. Sim, o título para aí aponta, mas como sabemos os títulos por vezes induzem em erro. Não é o caso. A história arranca com a chegada à Terra de uma "potestade", transfigurada em arcanjo; um elemento de uma espécie alienígena incompreensivelmente avançada e poderosa, a espécie responsável pelo êxodo de outros alienígenas do centro da galáxia e sua chegada à Terra. O que a atrai ao nosso planeta periférico é sequência direta dos acontecimentos das primeiras histórias: o roubo ao Mr. Lux e a entrada em funcionamento de tecnologia alienígena avançada, e por conseguinte proibida, que esse roubo pôs em mãos que não deviam ter a ela acesso.

Quanto ao Mr. Lux, esse também se transfigura, mas de outra forma. Desde as histórias anteriores sabemos que ele não é bem o que aparenta ser, ou não tivesse na sua posse precisamente a tal tecnologia proibida que está no fulcro de tudo. Mas aqui começa a ganhar mais um pouco de solidez, ao assumir o papel de... hm... Repararam na semelhança? Lux, palavra latina que significa luz, e está na raiz de outra palavra que também significa luz apesar de designar habitualmente um tal Senhor das Trevas? Apanharam? Lúcifer?

Claro que o uso da mitologia cristã não é literal. No mundo criado por Barreiros, os anjos, caídos ou não, são apenas máscaras com que os alienígenas decidem apresentar-se. Mas a guerra da luz com as trevas que está muito enraizada na mitologia judaico-cristã e transcende em muito a mera escala humana corresponde a uma guerra igualmente transcendente entre as ultrapoderosas criaturas que dominam o universo de Barreiros. Esta noveleta narra um episódio dessa guerra; e a sua principal qualidade, além do uso inteligente (e bastante pós-moderno) de mitologias prévias para aumentar a eficácia da transmissão da ideia ao leitor, consiste no facto de nada correr inteiramente de feição a nenhum dos intervenientes.

E além disso, todo o universo continua aqui a ser ampliado. No Terrarium como um todo, e nas histórias que o compõem em particular, não encontramos muita daquela exposição frequentemente entediante que explica ao leitor tintim por tintim toda a ideia, o ambiente, as personagens, por aí fora. Os infodumps. Não. Aqui a informação vai sendo transmitida aos poucos, por vezes à medida que vai sendo necessária, por vezes apenas onde faz sentido. E é também por isso que esta história é — estas histórias são — tão boa.

Venha a próxima.

Contos anteriores deste livro:

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