sábado, 16 de outubro de 2021

Pedro Pereira: O Acordo (#leiturtugas)

Existe um artifício narrativo que conheço pela sua designação inglesa, foreshadowing, mas julgo poder-se traduzir corretamente como "prefiguração", embora não saiba se é ou não essa a palavra usada pelos estudiosos da coisa literária quando escrevem em português. Consiste em antecipar elementos narrativos futuros, fornecer pistas ao leitor atento para o que está por vir. Pode ser extremamente eficaz em fornecer ao leitor aquela sensação satisfeita de "a-ha! Percebi-te!" Mas convém usá-lo com cautela: se a pista é demasiado óbvia é fácil destruir a surpresa e com ela a tensão narrativa, transformando a satisfação em aborrecimento.

E foi isso mesmo o que Pedro Pereira fez neste conto: deixou tudo tão óbvio que o final, que pretendia ser surpreendente, nada teve de surpresa.

O Acordo é um conto que vai beber profusamente ao velho e muito reutilizado mito de Fausto. O protagonista é um condenado à morte, segundo ele injustamente, e quando o Diabo lhe aparece com uma proposta que lhe poupa a vida ele não tem de pensar muito antes de aceitar. OK, já vimos centenas de coisas muito semelhantes. Mas o autor teve uma ideia que achou poder resgatar o conto do cliché, e resolveu fazer foreshadowing. Má ideia. O foreshadowing não funciona bem em textos tão curtos, porque uma coisa é dilui-lo no meio de uma floresta de outros factoides, outra bem diferente é pô-lo quase sozinho num conto que se lê em minutos. Fica tudo tão óbvio que dói, e a tentativa de foreshadowing transforma-se em mero spoiler. E sim, vêm aí spoilers. Que nem são propriamente spoilers, dado que o próprio autor os faz.

A questão é que o Diabo avisa o homem que lhe poupa a vida em troca da alma, trocando-o de corpo com alguém que está a assistir à execução. Todo o cenário é muito americano, sim; neste conto pouco há de português. Mas também o avisa de que o acordo só abrange esse momento; qualquer acidente que lhe possa acontecer depois está fora da alçada do combinado. E neste momento o leitor já sabe o que aí vem: o tipo vai sair vivo da cadeia mas pouco depois bate a bota num acidente qualquer. Óbvio, dolorosamente óbvio. E é precisamente o que acontece.

O resultado? Um conto com muito pouco interesse.

Este livro, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser descarregado a partir daqui.

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