Sempre achei algo bizarras as histórias contadas em primeira pessoa nas quais o protagonista/narrador acaba por morrer. Especialmente quando são escritas no passado. Há nelas uma violação que sempre me pareceu um bom bocado grosseira de uns quantos princípios de verosimilhança necessários para a suspensão da descrença indispensável para desfrutar de uma obra de ficção. Afinal, quem narra? O morto? E como é que o morto narra, exatamente? Hm?
Não que seja impossível fazê-las bem; há uns truques que, se bem aplicados, até resultam. Mas na generalidade dos casos os autores não usam esses truques e a coisa fica presa numa espécie de uncanny valley de onde não consegue sair.
E sim, se já supõem o que aí vem o mais certo é terem acertado. Pedro Pereira não usou esses truques. E a consequência é a primeira parte de O Caçador cair nesse uncanny valley, o que só é exacerbado pela mudança de ponto de vista na segunda parte. Compreende-se bem o que ele pretendeu fazer, mas o resultado é... bizarro. Sim, a palavra é essa. Bizarro. Atenção que vêm SPOILERS.
Na primeira parte do conto estamos em plena perseguição, na pele (porque a narração é em primeira pessoa, lá está) do perseguido. Parece-nos homem, sentimo-lo como homem, comiseramos com ele por ser homem. Mais bem escrito do que está, este trecho podia até ser bom, uma vez que Pedro Pereira até consegue criar alguma intensidade narrativa... até que o narrador morre e entramos no tal vale de que falo acima. Quem diabo narrou aquilo, afinal? E como?
Na segunda parte, muito curta, mudamos para a pele do caçador... e passamos, incongruentemente, a uma narrativa em terceira pessoa. Esta parte, na verdade, serve exclusivamente como final surpresa, para virar do avesso as expetativas do leitor. O caçado, afinal, não é um homem a ser perseguido por um monstro, mas um monstro a ser perseguido por um homem. É esta a ideia que o autor teve para o conto, e sem a bizarria anterior até talvez funcionasse. Mas como está, não funciona. É pena.
Este livro, como todos os publicados pela Fantasy & Co., pode ser descarregado a partir daqui.
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