terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Lido: O Livro do Mr. Natural

O Livro do Mr. Natural é um álbum de banda desenhada de Robert Crumb que reúne uma série de histórias desenvolvidas à volta do protagonista, o Mr. Natural, um guru new age, tão místico como vigarista, representado sempre como aparece na capa (embora nem sempre nu), como um tipo baixo e roliço com uma longa barba branca.

Não sei bem se nunca tinha lido Crumb, o que só por si demonstra bem que não sou bedéfilo. O estilo, quando comecei a ler este livro, não me foi estranho. Ainda aventei a hipótese de que poderia ser ele o autor de Os Sobrinhos do Capitão, histórias que acompanhei em miúdo nos álbuns de capa mole do Carlitos e só vinham assinadas por uma assinatura quase ilegível a que eu pura e simplesmente não ligava, mas uma comparação rápida informou-me de que não: há semelhanças no estilo rechonchudo do desenho, mas pouco mais. E depois, pesquisando, descobri que Os Sobrinhos do Capitão são no original The Katzenjammer Kids e foram criados por Rudolph Dirks. OK, esse assunto ficou arrumado, mas a sensação de familiaridade continuou sem explicação. O mais provável é ter tomado contacto com algum trabalho dele, algures, sem saber que era dele.

Seja como for, O Livro do Mr. Natural é um grande gozo. Ou uma sátira, como se diz em intelectualês. Um gozo, primeiro que tudo, a uma certa forma de estar em sociedade muito típica dos anos 60 e 70 do século passado. Um gozo à credulidade das pessoas, à facilidade com que um líder carismático pode influenciá-las e servir-se delas. O Mr. Natural está constantemente a testar os limites dos seus seguidores (em especial de um tal Flakey Foont, a sua vítima predileta), a abusar deles, a levá-los à certa enquanto debita frases vazias de qualquer espécie de significado mas todos acham muito profundas, e isso só lhe traz cada vez mais seguidores. Manda-os todos dar uma volta ao bilhar grande e eles vão e, quando voltam, são mais.

Hoje, um Crumb moderno que quisesse criar um Mr. Natural teria de fazê-lo diferente. Estes gurus new age, embora ainda existam, estão em franca decadência. Fora de moda. Já não atraem multidões, embora continuem a atrair grupinhos. Um Mr. Natural de um Crumb dos dias de hoje seria bem menos natural. Não se passearia nu por aí. Seria orador motivacional, escreveria livros de auto-ajuda (ou, mais precisamente, pagaria a alguém para lhos escrever), fundaria uma seita onde venderia vassouras ungidas para varrer o mal. Mas de resto seria igual. Debitaria frases vazias para aplauso geral. Refastelar-se-ia com a idolatria de que seria alvo enquanto, secretamente (poucos são tão descarados como o Mr. Natural), desprezaria os idolatradores. Seria menos surreal. Procuraria marcar presença em palestras TEDx. Quiçá, até talvez concorresse à presidência da república.

A personagem é bastante interessante, sem dúvida, e deu pano para mangas. Mas não gostei muito do livro. Há piadas demasiado óbvias. Há outras bastante básicas. Há uma certa misoginia, provavelmente inevitável em algo criado nesta época, mas mesmo assim desagradável. Há no guru uma canalhice vazia de escrúpulos que o torna previsível mesmo quando está aparentemente a ser o contrário (um pouco à semelhança do Mr. Bean). Há algum racismo. E há uma certa incongruência na própria personagem, que ora é genuinamente canalha e vigarista, ora parece acreditar nas suas próprias tangas.

Não me manifesto quanto à importância deste livro na BD americana (por clara incompetência), mas para o meu gosto, pessoal e intransmissível, ele deixou um pouco a desejar. Gostei, mas não muito. Diverti-me, mas nem sempre. Foi, como se diz por aí, um bocado meh.

Este livro foi comprado.

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