Chamem-nos Legião (bibliografia) é uma novela eletropunk de João Barreiros, com a habitual qualidade dos trabalhos do autor, mas também com a sua não menos habitual autorreferencialidade.
Neste texto, que tanto tem existência própria e razoavelmente independente do resto do livro, como serve para o rematar e atar as pontas soltas que ele foi deixando, vamos encontrar um espião inglês em viagem marítima para Lisboa, transportando consigo uma carga duplamente secreta, pois não só é secreta para os seus destinatários (parte de uma conspiração destinada a espiar a realeza portuguesa), como para o próprio agente secreto. E vamos também encontrar uma freira exorcista, cuja função é absorver "contaminações anímicas," uma espécie de fantasmas movidos a campos elétricos que, em atmosferas supersaturadas, tendem a contaminar (e a animar, por vezes) vivos, mortos e objetos inanimados. Efeito esse que, de resto, serviu de motor a praticamente todas histórias deste livro.
Espião e freira vão-se revezando nas páginas desta história, sem nunca se encontrarem ou sequer saberem um do outro, em duas linhas narrativas que apenas convergem no fim. Até lá, quem conhece a obra de Barreiros vai encontrar numerosos reflexos dela espalhados por todo o texto, como se este servisse um pouco como manta de retalhos de ideias antigas. Dos brinquedos animados e assassinos d'O Caçador de Brinquedos e de Noite de Paz aos grupos de combate compostos por uma unidade central e sapiente e uma legião de unidades-satélite a ela sujeitas das Crónicas do Exílio Lunar ou de Disney no Céu Entre os Dumbos, da metarrealidade de A Verdadeira Invasão dos Marcianos, que integra na realidade ficcional outras realidades ficcionais alheias a essa, à Lisboa apocalíptica submersa numa atmosfera líquida de Por Detrás da Luz, e por aí fora. É como se Barreiros estivesse constantemente a digerir-se a si mesmo enquanto autor, numa espécie de ficção recursiva da qual esta novela é apenas a mais recente iteração.
O resultado é bom, mas cansativo. Porque Barreiros escreve realmente bem e sabe como poucos tornar palpáveis os seus mundos fantásticos, e, até certo ponto, também as personagens, mas é impossível alguém que acompanha o que ele vem escrevendo ao longo das últimas duas décadas livrar-se da sensação de dejà vu. Para quem o descobre pela primeira vez, será provavelmente um deslumbramento. Mas para os mais experientes já não é.
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