Gostaria de ter gostado mais deste romance do Gerson Lodi-Ribeiro do que gostei. Afinal, não é todos os dias que um tipo lê um livro que abre com uma dedicatória coletiva na qual está incluído, uma honra de todo imerecida que o Gerson resolveu conceder-me, vá-se lá saber porquê. Gostaria, portanto, de poder corresponder a essa honra com uma opinião entusiástica sobre este Estranhos no Paraíso (bibliografia)... mas a verdade é que não creio que o livro mereça tal entusiasmo e não há volta a dar-lhe. Este é um romance com qualidades mas também com defeitos, que poderão ser mais ou menos sérios consoante o que cada leitor procurar na leitura.
Julgo provável que os problemas do romance nasçam da sua génese. Trata-se de um fix-up, isto é, um romance construído a partir de histórias escritas e, no caso, publicadas independentemente umas das outras. Muitas vezes, os fix-ups são compostos por histórias que já se ambientavam no mesmo universo ficcional, o que facilita a sua integração num todo maior (nem sempre, mas geralmente), mas no caso deste livro a ligação entre as duas histórias que lhe deram origem (um conto intitulado Bárbaros nos Portões e uma noveleta intitulada Missão Secundária) parece ser ténue, e digo "parece" porque não li uma dessas histórias, pelo que só a posso avaliar pelo conteúdo encontrado neste livro. Seja como for, seja ou não ténue essa ligação, seja ou não esse o problema de base, o facto é que falta ao romance uma linha narrativa forte o suficiente para lhe dar estrutura enquanto texto singular, o que faz com que as duas histórias se mantenham muito presentes no resultado final em vez de se fundirem num todo harmonioso e único.
E é pena porque aquilo que está na base da história, isto é, o worldbuilding, é realmente muito bom. Na verdade, é precisamente por isso que eu disse ali em cima que "os defeitos do livro poderão ser mais ou menos sérios consoante o que cada leitor procurar na leitura". Um leitor particularmente sensível aos detalhes de construção do universo ficcional encontrará aqui um acepipe raro na ficção científica lusófona; já um leitor que se preocupe sobretudo com outros aspetos da criação literária poderá sair da leitura algo desapontado. Especialmente se esperar ação.
O romance narra uma viagem pelo espaço e o que acontece depois da expedição regressar à Terra (ou não regressar; ver mais adiante). Essa expedição ruma a Delta Pavonis, uma estrela real e próxima, semelhante ao Sol, distando quase 20 anos-luz do Sistema Solar, em torno do qual não se descobriram planetas... ainda (há um candidato não confirmado). Mas no universo ficcional criado pelo Gerson há planetas a girar em volta da estrela. Na verdade não se limita a haver planetas: há planetas com vida, dois, com vida inteligente, um, e com uma civilização capaz de comunicar através de distâncias interestelares.
Em coerência com a muito elevada qualidade do worldbuilding, tudo isto é sólido e perfeitamente credível. Os planetas, sendo ficcionais, são completamente possíveis à luz dos conhecimentos científicos atuais, e o mesmo se pode dizer dos seus habitantes. Os quais, já agora, são realmente alienígenas, não os Homo sapiens com orelhas de borracha e pele pintada que aparecem em tanta FC... e não me refiro apenas à audiovisual.
A primeira parte do romance gira em volta dos planetas de Delta Pavonis e da civilização nascida num deles: os pavonianos. Também gira em volta da tripulação da nave e da civilização que esta deixou para trás. Como o cuidado dedicado ao worldbuilding pode levar a suspeitar, tudo é descrito em detalhe: a civilização terrestre é uma sociedade utópica nascida das cinzas de uma guerra termonuclear global que quase elimina a espécie humana, a tripulação da nave é composta por génios panssexuais com uma indomável líbido (há qualquer coisa de Star Trek: Voyager nesta nave... mas uma Star Trek: Voyager com muito mais sexo), e os pavonianos são uma civilização que o contacto interestelar apanha num estado mais atrasado de desenvolvimento e que, talvez por isso, vai acabar por seguir as pisadas da Terra... com piores resultados. Tudo sólido, tudo interessante, mas...
... tudo bastante parado.
À parte as abundantes cenas centradas nas relações interpessoais, de cariz sexual ou não, não é muita a ação nesta parte do romance ou, na verdade, em todo ele. Tudo é descrito em tom de depoimento (por motivos que o final do livro torna claros), com um único ponto de vista, o da comandante, e a abordagem é por isso amplamente descritiva, sem deixar muito lugar para uma ligação mais direta entre o leitor e as várias personagens. Mesmo quando a ação e o perigo surgem, o tom distante da narração tende a afastar-nos deles em vez de nos colocar lá. O que é narrado é de um modo geral francamente interessante (graças ao tal worldbuilding, sobretudo), mas suspeito que para muitos leitores não chegue.
E quando a nave parte do sistema de Delta Pavonis de regresso a casa, iniciando a sua missão secundária, as coisas não mudam muito de figura. Com a agravante de, pelo menos para mim, o universo ficcional criado aqui ter menos interesse do que o da primeira parte.
Mas não para o Gerson, aposto.
Como bem sabe quem sabe alguma coisa sobre as FC&F lusófonas, Gerson Lodi-Ribeiro é dos principais cultores da história alternativa na nossa língua, se não for mesmo o principal. Assim, não é surpresa encontrar um forte elemento de HA nos seus livros, e este não é exceção. Mas ao contrário do que muitas vezes acontece, a HA aqui presente tem tudo a ver com ficção científica.
É que a missão secundária que a nave vai executar é a investigação de uma tal "descontinuidade permeável", fenómeno espacial misterioso situado mais ou menos de caminho entre Delta Pavonis e o Sistema Solar. E não, este não existe; aqui estamos no domínio da ficção pura.
Ora, vem-se a descobrir que a descontinuidade permeável é uma região que permite, de forma muito limitada, a transferência de massa entre universos diferentes. E eis que a nave terrestre é apanhada desprevenida... e vai parar a um universo diferente. A um universo no qual a civilização terrestre se desenvolveu por outras vias.
Também aqui a construção do universo ficcional é sólida. As ideias sobre a descontinuidade permeável e os universos adjacentes vêm de especulações cosmológicas recentes baseadas na interpretação de muitos mundos da mecânica quântica, e a evolução alo-histórica que o Gerson cria poderá ser altamente improvável (essencialmente pela perenidade da civilização delas resultante, parece-me) mas certamente não é impossível. E se tivermos em conta que uma das principais inferências da interpretação de muitos mundos diz que se algo é possível, por mais improvável que seja, existe pelo menos um universo em que esse algo existe, fácil se torna compreender que a via histórica criada aqui não viola nenhuma regra de verosimilhança. Sim, pois é facto histórico que houve contactos entre as civilizações clássicas da bacia mediterrânica e as civilizações orientais, e o "e se?" que está na base desta especulação ucrónica é a possibilidade de, na sequência desses contactos, não ter sido o cristianismo a implantar-se no mundo romano, mas sim o budismo.
E eis que volta a haver aqui um acepipezinho de worldbuilding, agora muito em particular para quem gosta de história alternativa, pois o Gerson explora detalhadamente as diferenças (bastante grandes) que um tal ponto de divergência causaria na história da Humanidade, ao descrever a sociedade que os tripulantes da nave vão encontrar naquela Terra alternativa. Mas, de novo, ação é coisa que não abunda de todo, e aqui finalmente fica claro que o principal motivo para tal é todo o livro corresponder simplesmente à narração que a comandante da nave faz sobre a sua viagem para benefício das pessoas daquele universo diferente.
E a história termina com as dificuldades de adaptação de alguns dos tripulantes a um mundo que não é o deles. Por choque cultural, sim, mas sobretudo por incapacidade de encontrar naquela sociedade mais avançada e bastante diferente alguma atividade em que possam sentir-se úteis. De novo, tudo narrado com um certo distanciamento, apesar de os acontecimentos tocarem muito de perto a narradora, e com um estilo muito descritivo.
Feitas as contas, fica uma linha narrativa global razoavelmente fraca, a unir com pouca solidez uma série de episódios cujas linhas narrativas são muito mais fortes, uma construção de universo ficcional de excelente qualidade, e um ênfase na descrição que deixa a ação muito para trás. É um daqueles livros que propiciam experiências de leitura muito diferentes a leitores diferentes. No fundo todos o fazem, mas aqui talvez haja mais motivos para isso do que é hábito.
Para mim foi um bom livro, mas não um livro muito bom. Saboreei com gosto os muitos detalhes de worldbuilding que ele contém mas também me causaram um certo aborrecimento algumas das partes mais paradas ou mais centradas na dinâmica afetiva e sensual da tripulação. Imagino que quem ache mesmo que a FC é a literatura das ideias poderá adorar este livro, pois ideias é coisa que aqui não falta. Imagino também que quem, por outro lado, exija das suas leituras a tensão de um page-turner provavelmente não goste. Para mim, foi algo intermédio, embora mais próximo dos primeiros que dos segundos. Até porque também eu escrevo, também eu crio mundos, e as técnicas de worldbuilding que o Gerson aqui emprega foram para mim extremamente interessantes.
Não é livro para toda a gente, isso é certo. Terão de descobrir pessoalmente se é ou não para vocês.
Este livro foi-me oferecido pelo autor.
Salve, Candeias!
ResponderEliminarObrigado pela resenha honesta. Feliz que tenha considerado *Estranhos no Paraíso* um bom livro, ainda que não muito bom. Mais feliz ainda que tenha apreciado o "worldbuilding" que, de fato, é o ponto alto dessa narrativa.
Abração deste lado do charco!
É, Gerson. Gostei mesmo muito do worldbuilding (é quase uma lição de como fazê-lo bem), mas para o meu gosto concentraste-te demasiado nele. Senti alguma falta de outras coisas.
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