segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Lido: O Boitatá com Olhos de Césio

Se a edição de ficção científica propriamente dita é relativamente rara na língua portuguesa, especialmente quando falamos de originais, não de traduções, a edição de livros de um caráter mais ensaístico total ou parcialmente dedicados à ficção científica é pouco menos que inaudita, pelo menos fora do âmbito de teses de licenciatura ou doutoramento. Acontece raríssimas vezes em círculos académicos, não acontece quase nunca fora deles.

E quando acontece é quase sempre por intermédio de edições de autor, em papel ou, o que é mais frequente desde há alguns anos a esta parte, em formato eletrónico. Caso deste O Boitatá com Olhos de Césio, de Lúcio Manfredi, um PDF de 86 páginas publicado em 2003 sob a chancela virtual criada pelo próprio autor, a Metaxy, no qual ele compilou 15 artigos e críticas previamente publicadas nos fanzines brasileiros e que disponibilizou gratuitamente na web (o livro entretanto parece ter-se sumido; não o encontrei em lado nenhum).

E tem o seu interesse, para quem gosta deste tipo de coisa, mas também tem defeitos sérios. O principal? Uma forte tendência para a polémica estéril que esvazia alguns destes textos do interesse que poderiam ter, transformando-os mais em ataques quase ad-hominem a inimigos pessoais (e figadais) do que propriamente em ensaios minimamente objetivos. Servirão para afagar o ego do autor e irritar os dos visados, mas para o leitor comum que não seja propriamente amigo daquela muito humana tendência para parar para ver o acidente tornam-se chatos, bocejantes, totalmente dispensáveis.

Felizmente só alguns destes textos sofrem desta enfermidade, e alguns dos outros são realmente interessantes, umas vezes por causa da perspetiva adotada pelo autor, outras vezes apesar dela. É que Manfredi tem tendências místicas (ele provavelmente discordará), é dickiano naquilo que Philip K. Dick tinha de mais extranatural, irracionalista (de novo, ele provavelmente discordará), e por isso vê a realidade sob esse prisma. Ou melhor, as coisas e não a realidade, porque esta é para ele inerentemente duvidosa. E todos os textos estão imbuídos desta ideologia, a qual por vezes os enriquece mas a meu ver de outras vezes os empobrece porque os assemelha àqueles enormes castelos de cartas filosóficos que por mais elaborados e complexos que sejam se desmoronam se e quando um mero sopro fizer ruir alguma das suas premissas básicas.

Mas existe quase sempre a atravessar tudo um elemento de erudição, de coisa pensada. À parte as polémicas, que parecem quase sempre esgotar-se em si mesmas e seguirem pelos caminhos que o autor achou mais convenientes para construir uma oposição ao adversário, há aqui pouco de gratuito. Por mais estrambóticas que me pareçam, e parecem muitas vezes pois, sendo como sou racionalista, tenho uma opinião solidamente negativa sobre cabalices e gnosticismos e outros delírios do género, as opiniões do autor mostram quase sempre bases tão sólidas quanto o é a ideologia que o anima. E isso não só tem o seu valor intrínseco como por vezes consegue levá-lo por caminhos realmente interessantes e para mim inesperados.

Quem frequenta regularmente a Lâmpada facilmente suporá que peguei neste ebook principalmente para ver o que nele poderia existir com relevância para o Bibliowiki, e supõe corretamente. Já esquecido do que me levou a guardá-lo no disco do meu computador, esperava ficção, talvez contos, talvez uma mistura de ficção e não-ficção. Não foi o que obtive, mas o conteúdo deste ebook tem relevância para o Bibliowiki. Artigos sobre ficção científica, sobre José Saramago, sobre Fábio Fernandes, sobre Heinlein, sobre o figadal inimigo Roberto Causo, sobre vampiros na literatura, etc., encaixam certamente lá. Só terei de decidir ainda o que considerar resenha (o wiki não acolhe resenhas nem críticas pouco elaboradas; é inviável, há demasiadas) e o que considerar artigo ou ensaio. Mas isso pode ficar para depois.

Para já fica uma leitura com o seu interesse, que não me terá agradado assim muito mas que também não deixou de agradar.

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