terça-feira, 11 de setembro de 2018

Lido: Xochiquetzal em Cusco

Tal como aconteceu com Xochiquetzal e a Esquedra da Vingança, conto do qual este é sequência direta, também Xochiquetzal em Cusco (bibliografia) já tinha sido lida por mim há alguns anos. Ainda antes de ser publicada, na verdade, pois quem seguir o link ali em cima verá que ela viu pela primeira vez a luz do dia na antologia Por Universos Nunca Dantes Navegados, que organizei com o Luís Filipe Silva. Sou, portanto suspeito: já antes tinha gostado o suficiente deste texto para o escolher entre dezenas de outros para uma antologia (e na verdade sempre o achei um dos melhores contos contidos nesse livro), não deverá ser grande admiração que continue a gostar dele hoje.

Mas esta história não é a que eu li.

Oh, é parecida. O enredo é basicamente o mesmo, a voz narrativa também, o estilo idem aspas. Mas Clara Cristina Pereira, o pseudónimo, cede agora lugar a Gerson Lodi-Ribeiro, o ortónimo, e com esse chega-para-lá vem uma expansão bastante considerável do texto que, sendo originalmente uma noveleta (embora grande), entra agora sem qualquer dúvida no campo das novelas.

Relata a novela a intervenção portuguesa (e "lusíada", termo usado para designar os vassalos de Portugal) na guerra civil que dilacerou o Império Inca quando o imperador Huayna Capac morre e dois dos príncipes, Atahualpa e Huáscar, lutam pelo poder. E aqui tanto faz falar-se da linha histórica alternativa postulada neste livro como na linha histórica real, pois a guerra existe em ambas, gerada pelos mesmos fatores e com os mesmos protagonistas. Os acontecimentos, como já acontecera com Xocuiquetzal e a Esquadra da Vingança, são narrados pela princesa azteca Xochiquetzal, mulher de Dom Vasco da Gama, a qual está presente em todas as viagens e combates do marido mas geralmente sem participar, mantendo-se como mera observadora, muito embora aqui acabe por ter uma ação direta de caráter mais diplomático.

Menos movimentada do que o primeiro conto do livro, por estranho que possa parecer quando se sabe que contém mais episódios de ação, o principal motivo de interesse desta história é um desenvolvimento muito bem feito das relações de poder, das cumplicidades e rivalidades e da teia de interesses nem sempre coincidentes que Lodi-Ribeiro tece entre os suseranos portugueses e os povos americanos que lhes prestam vassalagem. A páginas tantas surge o melhor exemplo disso mesmo, quando Xochiquetzal intervém diretamente na ação, a pedido do príncipe Atahualpa, explicando-lhe por que motivo os mexicas aceitaram aliar-se, em posição subalterna, aos portugueses.

Outro pormaior nesta história é a forma como o autor joga com as culturas dos povos americanos, pondo-as em confronto com a cultura portuguesa (essencialmente a cultura marcial, mas não só), baseando-se em investigação histórica que tem todo o ar de ter sido intensa. São particularmente interessantes os apontamentos de choque cultural sofridos tanto pela narradora azteca, Xochiquetzal, como pelas personagens andinas. É quase palpável a luta interna que uns e outros têm de levar a cabo para conseguirem harmonizar a superioridade tecnológica e a eficiência militar portuguesa com costumes que para eles são particularmente bárbaros. Os portugueses surgem aos olhos americanos como brutamontes malcheirosos e porcos, que fazem a guerra sem a ritualização e o respeito pelo inimigo que seriam naturais, e simultaneamente como semideuses invencíveis e praticamente invulneráveis, e isso é muito bem transmitido no texto, graças em boa medida à escolha da narradora. E trata-se também de uma inversão muito interessante do discurso eurocêntrico que tem sido habitual ao longo da história (ainda popular em certos setores mais matarruanos), segundo o qual os povos civilizados, isto é, os europeus, partiram à conquista para levar a civilização aos bárbaros do resto do planeta.

Em suma, outra boa história. Não gostei tanto desta como da primeira, porque lhe falta um pouco da frescura que aquela tem e porque há trechos em que se arrasta um pouco em demasia — não creio que a expansão para novela tenha sido inteiramente bem sucedida — mas é na mesma bastante boa.

Conto anterior deste livro:

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