quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Lido: Xochiquetzal

Há livros que eu muito sinceramente não consigo perceber por que motivo não estão publicados em Portugal e aqui temos um caso gritante. Dir-se-ia que um livro de história alternativa centrado na expensão ultramarina portuguesa, reinventando-a de uma forma muito original, teria tudo para interessar muito a editoras e leitores, certo? Certo? Mas aparentemente não. Embora eu admita não saber se e quais esforços fez Gerson Lodi-Ribeiro para publicar esta obra por cá, o facto é que ela é praticamente desconhecida dos leitores portugueses, pois mesmo tendo ambas as histórias que a constituem sido publicadas em duas antologias portuguesas, estas tiveram uma circulação restrita e há demasiados leitores que mesmo conhecendo-as não lhes pegaram porque muito mais facilmente compram um livro de autor único do que uma antologia.

O grande achado deste Xochiquetzal (bibliografia) é, precisamente, Xochiquetzal, a princesa asteca que o narra à maneira de um cronista quinhentista, esposa e companheira de viagens de Vasco da Gama (o qual abandonara uma outra esposa, esta portuguesa, na Vidigueira), aqui já não o descobridor do caminho marítimo para a Índia, que nesta alternativa histórica só é descoberto anos mais tarde, mas um importante navegador e almirante, encarregado de fazer valer no "oceano d'el rei" e nas terras que lhe são limítrofes a superioridade militar e naval portuguesa.

Escrita sob a perspetiva dela, a história ganha um tom muito especial, ao mesmo tempo participante e distanciado, lusófilo e crítico dos usos, costumes e atitudes dos portugueses, e uma forte influência das culturas indígenas americanas, não só a asteca que é a dela mas também, mais tarde, a inca. Isto é amplificado por um texto fortemente arcaizante que talvez não emule na perfeição os textos quinhentistas mas certamente remete para eles. O que ganha é a credibilidade da história, a sua verosimilhança, a sua capacidade em fazer-nos acreditar que esta alternativa histórica, sendo como sabemos irreal, podia perfeitamente ter sido real.

O livro é apresentado como romance, e é-o de facto, mas de um tipo especial. É um romance em mosaicos, conhecido na língua inglesa como "fix-up", em que se agrega uma sequência de histórias da mesma série para contar uma história mais ampla do que todas elas. Neste caso são duas, o número mínimo, e talvez resida aí o principal defeito da obra porque ela termina muito em aberto. Seria interessante sabermos mais sobre a vida posterior da princesa Xochiquetzal e do seu aventureiro marido Vasco da Gama. E também sobre como estas peculiares relações de vassalagem e aliança entre os portugueses e as grandes civilizações meso- e sul-americanas (os portugueses também se instalaram na América do Norte, mas isso só é mencionado de raspão neste livro) se poderiam desenvolver nos anos seguintes. Ou seja: existe um potencial (ainda?) por explorar neste universo ficcional.

Mas mesmo assim, o livro é bastante bom e muito interessante. Julgo até que seria mais interessante para leitores portugueses do que para brasileiros. Talvez não interessante no sentido de estar cheio de ação e reviravoltas de enredo, que não é esse o seu foco, mas sim no que toca às questões que levanta e sugere sobre os primórdios da expansão colonial portuguesa e, por extensão, ibérica. E é esse, afinal, o principal interesse da história alternativa, numa espécie de simetria com a ficção científica. Se os futuros da FC servem de espelhos de distorção em que o presente é refletido e exagerado, os passados das melhores HA são também eles espelhos em que o passado real, de que o presente é consequência, sofre tratamento semelhante. Neste caso com uma camada adicional que é a visão do outro, começando pelo outro brasileiro do próprio autor (que só é outro em parte, dado o Brasil de hoje ser tão consequência da expansão portuguesa como o Portugal contemporâneo) e terminando no outro que protagoniza o livro.

Alguém que o publique por cá, vá lá.

Eis o que achei dos dois contos individualmente considerados:
Este livro foi-me oferecido pelo autor.

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