Vamos pôr isto logo aqui a abrir para despachar esta questão desde o princípio: Orson Scott Card é um indivíduo execrável. Homofóbico, misógino, na pior tradição da extrema-direita americana que elegeu e continua a apoiar aquele bebé birrento da Casa Branca, Card tem uma história de declarações que podiam perfeitamente ter sido proferidas por algum fundamentalista evangélico, apesar de ele próprio ser mórmone, declarações que qualquer análise objetiva só pode enquadrar no discurso de ódio. Por outro lado, é dos escritores de ficção científica mais aclamados das últimas décadas.
Não é o primeiro caso, nem será o último, em que a figura repugnante do autor contrasta fortemente com a qualidade mais ou menos consensual da obra. E não é o primeiro caso, nem será o último, em que para uma porção significativa dos leitores essa figura do autor contamina a perceção sobre a obra e/ou a disponibilidade para de lhe dar uma oportunidade. Esse foi um dos motivos por que eu hesitei durante muitos anos quanto a comprar este livro: a curiosidade estava lá a alimentar a vontade de ler, mas sempre que esta ameaçava atingir o ponto em que a compra se tornaria provável, lá ficava a saber de mais uma declaração troglodita do autor, e passava-me.
Até que deixou de passar.
Mas a demora não teve só esse motivo. É que eu sabia de antemão que O Jogo Final (bibliografia) é mais um livro de ficção científica militar, um pouco na senda do Starship Troopers, do Heinlein. E mesmo que Card afirme nunca ter lido o livro de Heinlein, logo não poder haver influência de um livro sobre o outro, as semelhanças existem e foram notadas por muita gente. Criatividade paralela, provavelmente. Seja como for, a comparação é praticamente inevitável. Ora, eu detestei o Starship Troopers. E, embora seja verdade que a existência de semelhanças ou influências entre dois livros não signifique que quando se escava um pouco mais eles sejam realmente semelhantes, o que se comprova, se necessário for, pelo facto de livros que são de facto respostas diretas ao Starship Troopers — como Guerra Sempre, do Joe Haldeman — serem magníficas obras de ficção científica militar, sim, mas também pacifista, não é menos verdade que as posições políticas e sociais de Card me faziam temer que este seu romance pendesse bastante mais para o lado do de Heinlein que para o de Haldeman. Ou seja: que não fosse só o autor a ser detestável; que o próprio livro também o fosse.
Mas não é, mesmo não estando isento de problemas.
A história básica é banal e é aquilo que mais se assemelha ao livro de Heinlein: uma espécie alienígena insetoide e imperialista ameaça o império interestelar terrestre, e fá-lo com uma tecnologia, um poderio estratégico e uma tenacidade que põem as forças militares humanas sob enorme pressão. Para lhes resistir, essas forças humanas recorrem a medidas desesperadas, passando a população a pente fino em busca dos mais promissores candidatos a oficiais. Ou melhor, do mais promissor candidato a oficial. De um génio militar, comparável aos grandes conquistadores da história. E não querem um qualquer. Querem um muído, porque só um miúdo é moldável e treinável segundo os parâmetros que estabeleceram de antemão.
Aqui começa o que há de mais problemático neste romance. As crianças-soldados têm uma longa e tristíssima história neste planeta, que de resto ainda prossegue, e é por isso tema que não pode ser tratado com ligeireza. Card, além disso, põe o seu miúdo-oficial a ser alvo de um treino que ultrapassa largamente o limite da tortura, psicológica, sobretudo, mas não só. Porque esta é a história de como se transforma um miúdo brilhante mas razoavelmente normal, na medida do que é possível quando se é irmão mais novo de um psicopata, num monstro.
E é isso o que acompanhamos no decorrer do romance: a forma como Ender Wiggin, assim se chama o protagonista, vai sendo transformado num monstro por força do treino que lhe é dado na escola de oficiais, uma instalação isolada, orbital, onde os miúdos são postos em competição uns contra os outros das formas mais variadas, com recurso a jogos de computador (ou pelo menos àquilo que julgam ser jogos de computador), a simulações de combate em gravidade zero, etc. e mais etc. Mas um monstro extraordinariamente eficaz, precisamente aquilo que os militares pretendiam. Um monstro capaz de ganhar a guerra.
E pairando sobre tudo existe uma sensação de inevitabilidade, mesmo quando se percebe que o resultado de toda a atividade militar é simplesmente o genocídio, mesmo quando, no final, Ender se revolta, aparentemente de vez, contra aquilo que dele fizeram e quem o levou a cometer atos monstruosos. A sensação de que, no fundo, todos os crimes foram necessários. Até porque Ender é predestinado à grandeza, e o mesmo acontece com os irmãos, tanto o psicopata que o torturava em pequeno e ao crescer se transformou em estadista como a irmã que tentava protegê-lo, que ele amava e que acaba por se aliar a um e a outro dos irmãos para alcançar alguma espécie de equilíbrio entre eles.
No fundo, Card pergunta se há limites e responde de forma ambígua. À superfície, a revolta de Wiggin parece dizer que sim, que há limites, que tem de haver limites. Mas se escavarmos um pouco mais fundo o que vemos é uma sucessão de acontecimentos que, depois de serem postos em movimento, se tornam inevitáveis, imparáveis, o que justifica todas as escolhas e todos os crimes. Se o livre arbítrio é no mínimo limitado, se as atrocidades são pelo menos em grande medida inevitáveis, tudo o que se faça tem justificação e a culpa, no fundo, não existe realmente.
Mas a verdade é que o livro é bastante bom. A história, por mais incómoda que seja por vezes, e na verdade também por causa disso, está muito bem contada, sem rodriguinhos, com um estilo direto que encaixa como uma luva no tema e no ambiente, sem nenhuma das longas divagações ideológicas que transformam o Starship Troopers num livro imensamente chato, antes levando os leitores a ingerir a ideologia subjacente de uma forma bastante mais subtil. De certa forma é mais insidioso e por isso mais perigoso. Mas a qualidade é inegável. Levar-me-ia a comprar a sequência se ela tivesse sido publicada em Portugal?(*) Sim, levaria, tanto por causa dessa qualidade como para ver se nos livros seguintes Card resolve alguma da ambiguidade que aqui deixa ou a reforça. E talvez o faça, mesmo em inglês.
Este livro foi comprado.
(*) A sequência foi publicada em Portugal. Tolamente, não fui verificar ao Bibliowiki antes de publicar isto e saiu disparate.
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