sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Lido: A Terrível Criatura Sanguinária (#leiturtugas)

Há na literatura uma técnica com alguns exemplos famosos, a que eu gosto de chamar "escrever em cebola", uma expressão assumidamente irreverente que designa a introdução de histórias dentro de histórias, eventualmente dentro de histórias e dentro de histórias. O mais célebre texto "em cebola" que conheço é o romance Drácula, de Bram Stoker, mas não é preciso usar extensões longas para o fazer. Na verdade, muitos contos de fantasmas do século XIX e início do século XX também são contos "em cebola", pois neles encontramos com frequência depoimentos de alguém que ouve outra personagem contar uma história inacreditável e a regista, ou que conta a um grupo de amigos alguma história ouvida a um outro amigo ou lida algures.

Pois bem: este A Terrível Criatura Sanguinária, de Nuno Markl, é um conto em cebola com duas camadas. Na camada exterior, estamos perante um conto mundano sobre as lutas entre um escritor e o seu editor, mais interessado em vender as histórias da moda do que naquilo que o candidato a autor publicado quer exprimir. Na camada interior, temos a história que esse escritor escreve: uma fantasia urbana sobre, lá está, uma terrível criatura sanguinária. Que terrível criatura sanguinária? Bem, a personagem, que é assim uma espécie de alter ego do autor, que por sua vez se parece muitíssimo com um alter ego do Nuno Markl (lá está: cebola) é um banalíssimo humano num mundo cheio de muito sexys lobisomens e vampiros, e ressente-se disso. Portanto também quer transformar-se em monstro, para ver se fica sexy e apimenta a relação com a mulher. E consegue. Em parte. Mas claro que, sendo o Markl quem é, a parte que não consegue corre francamente mal.

É um conto engraçado e interessante, apesar de estar demasiado preso à persona habitual do Markl para que eu o ache realmente bom. Consequências de anos e anos de exposição pública; a novidade já é pouca, e quase tudo se torna mais ou menos previsível. Mas para mim, este conto tem a curiosidade acrescida de parecer que dois dos contos que escrevi em 2012 para o Infinitamente Improvável (Uma História Verdadeira, Segundo Quem a Contou e Quem Quer Ser Super-Herói?) fizeram tórrido amor um com o outro e tiveram um filho. Parece-me infinitamente improvável que tenha havido alguma espécie de inspiração cruzada entre uns e outros, até porque o Markl publicou o seu também em 2012, em dezembro, muito pouco tempo depois dos meus serem postos online, mas há vários pontos de contacto entre os meus contos e este.

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