sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Lido: O Burro do Azeiteiro

Mais anti-intelectualismo. Neste conto recolhido por Adolfo Coelho em Lisboa junto de alguém oriundo de Almeida, temos dois estudantes sem dinheiro que resolvem passar a perna a um azeiteiro que se revela tão idiota como os estudantes são desonestos. A ideia é roubarem O Burro do Azeiteiro, vigarizando o dito azeiteiro e vendendo depois o burro, o que só conseguem fazer porque o azeiteiro não tem dois neurónios a que possa chamar de seus. Sim, o conto pretende ser divertido, uma comédia de costumes sem qualquer elemento fantástico, mas a mim mais depressa levanta questões do que os cantos à boca.

Parece-me claro que existe uma componente de classe nestas histórias em que os estudantes são sistematicamente retratados ora como estúpidos, ora como desonestos. Um fundo de contestação surda aos privilegiados que estão a caminho de ser doutores. Também há um fundo de verdade nelas, pois a típica (e secular) boémia estudantil presta-se a certo tipo de comportamentos, como bem sabe qualquer pessoa que tenha passado por uma universidade. Mas a boémia não é, nem nunca foi, exclusiva da classe estudantil. E julgar-se-ia que à medida que a educação se fosse aproximando da universalidade (e hoje está-o muito mais do que estava no século XIX, apesar de propinas e outros escolhos no caminho) esta tendência anti-intelectual se fosse atenuando e sendo substituída por outras formas mais racionais de luta de classe. Mas tudo indica que não, que só tende a incentivar-se. E a questão é: porquê? O que leva tanta gente a ter autêntico ódio (francamente perigoso porque promove todos os tipos de estupidez) de quem tem alguns conhecimentos técnicos?

Esta é uma questão a que conviria dar resposta com a máxima rapidez.

Contos anteriores deste livro:

2 comentários:

  1. que leva tanta gente a ter autêntico ódio (francamente perigoso porque promove todos os tipos de estupidez) de quem tem alguns conhecimentos técnicos?

    Em que contexto? Social, laboral? A nível social existe a muito portuguesa invejazinha de alguém que de alguma maneira conseguiu algo que o invejoso não conseguiu. Isto aplica-se em tudo em geral, desde o automóvel ao curso superior.
    A nível laboral tem outras causas. Obviamente que os conhecimentos técnicos e outra habilitações ameaçam o posto de trabalho de quem não os tem. É giro dizer às pessoas que invistam na formação ao longo da vida quando trabalham tantas horas por dia que não têm tempo para mais nada e por um ordenado miserável que também não lhes permite comer e investir em formação de qualidade. Sai mais barato às empresas contratarem alguém que já traz os cohecimentos, pagos do seu bolso, do que investir na formação contínua. Aqueles que não podem pagar formação do seu bolso ficam de lado, e o ciclo de pobreza vai-se repetindo eternamente. É claro que o ressentimento também se vai repetindo eternamente enquanto as pessoas sentirem que uns nascem para ser azeiteiros (porque são pobres e pobres ficarão sempre) e outros têm papás que pagam tudo e não dão o devido valor ao que têm.

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    1. Na verdade, apesar de eu aqui refletir sobre uma história portuguesa, esta tendência é muito mais universal do que nacional. Elegeu o Trump nos Estados Unidos, elegeu aquele desastre no Brasil, venceu o Brexit, por aí fora. Ou seja, acho que tens parte da resposta, mas só parte.

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