Já o disse anteriormente e repito agora: Eça de Queirós, quando envereda pelo fantástico, usa quase sempre como base a mitologia cristã. Os exemplos são múltiplos, mas este Adão e Eva no Paraíso é dos mais claros, pois não deixa qualquer dúvida logo a partir do título.
Trata-se de um conto ao mesmo tempo bíblico ao ponto de ser beato e levemente herético, de uma forma que faz lembrar um pouco as aventuras de Saramago pelo mesmo tipo de inspiração. Escusado será dizer que está muitíssimo bem escrito. Quanto ao enredo, recua ao Génese, apresentando-nos a vida de Adão, primeiro, e mais tarde de Adão e de Eva no Paraíso, o jardim do Éden, onde todos os animais conviveriam numa paisagem de abundância, não pacificamente, como rezam certas histórias, mas com a violência e a luta pela sobrevivência que se encontram hoje em dia no mundo natural (e se encontraram sempre, na verdade, pelo menos desde que na sopa primordial surgiu o primeiro consumidor).
O Adão de Eça, contudo, não é o Homo sapiens perfeito (e branco, e louro) que certas histórias cristãs apresentam como tendo sido criado à imagem e semelhança da divindade. Pelo contrário, é um brutamontes, amacacado, hirsuto e de testa baixa, recém descido das árvores. Eça parece esforçar-se por conciliar os mitos de origem abraâmicos com o que já no seu tempo as ciências naturais tinham descoberto sobre a verdadeira origem humana (e das outras espécies), e há no conto uma espécie de seleção natural acelerada e uma alteração ultrarrápida de formas à medida que o ambiente o exige. É muito mais lamarckiana do que darwinista, claro, mas mesmo assim afasta-se de algumas ortodoxias cristãs. Talvez tanto quanto o tempo e a tacanha sociedade portuguesa da época lho permitiam.
E é essa espécie de evolução que o conto conta, em especial depois de Eva se lhe ter juntado e provado o fruto da sabedoria. E poderia ficar-se por aí mas, convenhamos, pouco adiantaria face a histórias já mais que conhecidas por todos os que tenham crescido mergulhados numa cultura que, por mais alternativa que seja a educação que receberam, não deixa de ser muito cristã. Talvez por isso, Eça remata esta sua história com uma pergunta, no fundo a mesma que o levara a escrever Civilização: valeu a pena? Estamos melhor assim, plenamente civilizados e cheios de conhecimentos, ou estaríamos melhor sendo amacacados e trogloditas mas plenamente integrados no mundo natural? Não dá uma resposta expressa, mas não é difícil perceber que a sua opinião é que estaríamos melhor não sendo o que somos. De novo o ludismo queirosiano desponta, e de novo me repele. Este conto é bom, sim, mas deixou-me uma certa amargura na boca.
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