segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Lido: A Aia

Ah, dramas e facas e alguidares. O que seria da literatura portuguesa sem dramas e facas e alguidares? Se perguntassem a muita gente a resposta que obteriam iria provavelmente na linha de «não seria a mesma», ou coisa do género, querendo com isso dizer que teria menos interesse do que tem. Mas estão a perguntar-me a mim, não é? E eu, concordando que não seria a mesma, acrescento que seria melhor do que é. E isso é para mim claro quando comparo este A Aia com a generalidade dos contos que ficaram para trás neste livro de Eça de Queirós.

Sim, A Aia tem abundância de dramas e facas e alguidares. E está longe de ser um mau conto, atenção! Na verdade, entre as histórias com abundância de dramas e facas e alguidares que já me passaram pelos olhos é capaz de ser das melhores. Que digo? Não é capaz coisa nenhuma; é de certeza das melhores. Mas... podia ter menos dramas e facas e alguidares e mais de outras coisas e ficaria bem melhor. A meu ver, bem entendido.

Com alguma inspiração narrativa nos contos populares e provavelmente também na história de D. Sebastião, o conto é ambientado num reino medieval em que o rei morre a combater em paragens distantes, deixando uma mulher nova e um filho e herdeiro bebé. Mas tem um irmão bastardo, maligno e ambicioso, que depressa aproveita a oportunidade para tentar capturar o poder para si. Coisa que só pode fazer matando o legítimo herdeiro, evidentemente.

Do seu lado, o rei bebé tem a mãe e uma aia, que Eça nunca chega a dizer com todas as letras que é negra apesar de o deixar claro através das várias alusões que vai espalhando pelo texto a cabelos crespos, à escravatura ou à terra de que ela é proveniente. Uma aia que tem um filho da idade do rei bebé e que, apesar de ser escrava, ama a este como se seu fosse. E Eça perde aqui uma oportunidade para ser minimamente incisivo na questão da escravatura, pois apesar de pintar a aia escrava nas cores da total bondade, dá-lhe também uma fidelidade quase canina, perpetuando assim o mito do escravo grato ao dono, do escravo que se sente merecedor da sua condição. É à volta da aia que se desenrola a toda a tragédia do conto, e não se vislumbra nela um impulso de rebeldia, muito pelo contrário. O conto está concebido de forma a fazer pingar uma lagriminha às leitoras (sobretudo, uma vez que tem como principal tema a maternidade) sensíveis em honra do destino que caiu em sorte à pobrezinha da aia, coitadinha, tão boazinha, mas sem pôr minimamente em causa nenhuma relação de poder.

E isso compreender-se-ia e aceitar-se-ia num conto publicado lá pelos idos de mil e setecentos, ou assim. Mas num conto que veio a lume em 1902? Não. Mas não mesmo. Os queirosianos que me perdoem, mas este conto deixa muito a desejar em vários aspetos importantes.

Contos anteriores deste livro:

5 comentários:

  1. E toda a vida eu a pensar que este conto era de Alexandre Herculano!!! :o
    Li-o inserido num livro de Português da escola, já não me lembro de que ano. Sempre fiquei muito chocada com o que a aia fez. Pensei, na altura, que era uma questão de patriotismo e por isso devo ter associado a Herculano.
    Agora fizeste-me ler o conto outra vez e realmente reparei nos pontos que referes: a felicidade da servidão, a aceitação. Inconscientemente isso deve ter-me chocado também (eu era miúda) mas chocou-me mais a parte de sacrificar o própiro filho. Nunca me pareceu credível.

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    1. Sim, também não me parece credível... a menos que se imagine coisas que não estão no conto. Que a aia ama o principezinho como se fosse seu é óbvio mas não me parece que chegue. Já seria credível se ela temesse pela vida, a sua e sobretudo a do filho, caso não fizesse o que fez. E isso faria sentido num contexto de escravatura. Mas não está no conto.

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    2. Sim, se por não sacrificar o filho fosse castigada com algo muito pior, ou se o filho fosse morto à mesma de forma requintadmente cruel. Mas isso iria contra o amor que ela tem aos amos, até ao rei morto, e ao contentamento com a sua condição de escrava.
      Quando pensava que o conto era de Herculano, compreendia isto numa perspectiva patriótica. Agora tenho de ver o conto com outros olhos e pensar nele outra vez. Não é costume Eça não ter mensagens críticas. Deve haver aqui algo mais.

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  2. O que nunca percebi do conto é que a escrava fosse negra e, agora que acabei de ler, continuo a achar que não há bases para essa extrapolação. Cabelos negros e crespos há vários. O rosto dela é "mármore". A religião dela acredita no Céu. (Muçulmana, talvez?)
    Este conto parece-me algo anacrónico ou de Fantasia. Por um lado aponta para tempos medievais, por outro fala da riqueza das Índias. Concordo com os paralelos com Alcacér Quibir, mas este conto podia ter-se passado em qualquer sítio, até num sítio ficional. A origem e crenças da escrava também podem ser ficcionais.
    Eça tem-me surpreendido com um pendor para a Fantasia que lhe desconhecia. É um Eça que gosto mais do que o dos Maias.
    http://www.gargantadaserpente.com/coral/contos/eca_aia.shtml

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    1. Reconheço que há nessa parte da opinião alguma interpretação pessoal, proveniente dos cabelos crespos e de a escravatura genericamente mais próxima dos tempos queirosianos ser negra.

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