Pois é. Já anda por sí a minha mais recente tradução, o último livro de Robin Hobb a ver a luz do dia em terras portuguesas. E o último livro de Robin Hobb que é protagonizado por uma personagem que me acompanhou durante anos: FitzCavalaria Visionário.
Não era para acompanhar. Se repararem, o primeiro volume deste universo que foi publicado por cá está assinado por outro tradutor. Foi ele que tomou as primeiras decisões relativas a uma série de coisas, da adaptação ou não dos diálogos ao que é padrão na língua portuguesa (travessões em vez de aspas) aos nomes de terras, regiões e personagens, passando pelas designações dadas às magias. Foram em geral decisões iguais às que eu tomaria, com algumas exceções (eu teria usado travessões, por exemplo), mas por motivos que agora não vêm ao caso a editora decidiu mudar de tradutor e estes livros vieram parar-me às mãos. Às vezes acontece, e pelos motivos mais variados. Também já estive do outro lado, por exemplo com a série do Skovron.
Não era para acompanhar, mas acompanhou. Foram quatro livros na primeira série, mais cinco na segunda, e mais cinco nesta. Catorze ao todo, e todos a atirar para o calhamaço, com trezentas e tal páginas, no mínimo. Recordando agora esta viagem, chego à conclusão de que passei nos Seis Ducados ou a viajar fora deles na companhia do Fitz e do Bobo (e nos últimos tempos também da pequena Abelha, e nos primeiros do lobo Olhos-de-Noite) mais de três anos da minha vida. É muito tempo. São muitas, muitas páginas, muitas, muitas, muitas palavras, e também muitas emoções, que isto de traduzir literatura não é propriamente um trabalho friamente técnico, não se reduz propriamente a escolher a palavra certa para expressar noutra língua cada uma das palavras do original. Há que transpor também a carga emocional que essas palavras e o seu arranjo pretendem transmitir.
E se há coisa que Margaret Ogden (verdadeiro nome de Robin Hobb) gosta de pôr nas histórias que escreve, é carga emocional.
Pior um pouco: por vezes esta história entrelaçou-se com a minha história pessoal de uma forma particularmente marcante. Durante as piores partes da doença do meu pai, por exemplo, estava eu a traduzir os livros da segunda das três séries, e quis o acaso que quando o meu velhote perdeu a guerra contra o cancro estivesse precisamente na parte em que o Fitz perde Olhos-de-Noite. Sei que mergulhar no trabalho me ajudou a fazer o luto, por ter alguma coisa em que pensar além de ter acabado de perder um dos alicerces da minha existência, mas não sei bem se ser obrigado a traduzir essa parte em concreto me ajudou ou prejudicou. Certo é que é algo que não esquecerei enquanto for vivo; foi muito marcante.
E felizmente não estava a traduzir este livro, porque tê-lo-ia sido ainda mais. Talvez muito mais.
Porque este livro é uma longa despedida. Uma despedida da série e dos seus protagonistas, ou pelo menos da maioria deles, em que a memória tem um papel fundamental e em que se amarra uma série de pontas que foram sendo deixadas mais ou menos soltas ao longo das várias séries. Se Hobb gosta de pôr nos seus livros uma forte carga de emoção, aqui carrega mais ainda nessa tecla, e fá-lo de forma muitíssimo hábil.
Vou fazer uma confissão: quando peguei na série, no inverno do já distante ano de 2009, recém saído das primeiras traduções do Martin e de um romance isolado de que gostei muito (A Criança Roubada, do Keith Donohue), não apreciei grandemente o mundo e as personagens com que tinha de trabalhar. Parecia-me tudo demasiado derivativo, falho de originalidade, apesar de sempre me ter parecido que a escrita propriamente dita era bastante boa. Com os anos, porém, não só devido ao desenvolvimento da história mas também, parece-me, em consequência de uma segurança cada vez maior da autora na sua arte, esta opinião foi a pouco e pouco mudando. Hoje, ao chegar ao fim, estes livros conquistaram um lugar no meu coração, não só por ter deixado neles um pouco de mim, como acontece sempre com qualquer tradução, mas porque realmente julgo que foram melhorando livro a livro, série a série, ano a ano.
E este é um livro do caraças. Tem de tudo: ação, revelações, emoção a rodos, qualidade no manejo da palavra, por aí fora. Do caraças.
Foi um prazer, Fitz. Foi um gosto, Bobo. Fica bem, Abelha.
Vou sentir a vossa falta.
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