No meu ideal, a literatura é melhor quando tudo funciona em pleno, e o que este pleno significa é que todos os aspetos de que é feita a criação literária estão a dar o contributo mais apropriado para o resultado final. Não o maior, necessariamente, mas o mais apropriado. Não existe uma receita; é história a história que se avalia o grau de adequação de cada contributo, porque cada história tem as suas próprias exigências. Um dos contos labirínticos e cerebrais de Borges seria totalmente destruído se o autor tivesse tentado introduzir nele um estudo sentimental de personagem, por exemplo, ao passo que muitas das ficções curtas de Eça têm nesse tipo de estudo o seu principal sustentáculo, e perderiam, e muito, se a páginas tantas lhes caísse em cima uma estrutura matemático-filosófica a brincar com o infinito. Tudo é relativo.
Por vezes, estas destruições totais hipotéticas acontecem mesmo, até em coisas publicadas. Já me passaram pelos olhos, por exemplo, histórias carregadas de boas ideias mas mal escritas ao ponto de se tornarem ilegíveis, e passam-me com alguma frequência pelos olhos histórias muito bem escritas mas completamente vazias de conteúdo. Mas é mais comum que a destruição seja relativa, que as coisas falhem não ao ponto da ruína total mas apenas o suficiente para que a história fique algo longe de atingir o seu potencial.
E foi precisamente o que aconteceu com Rapsódia sem Dó (Maior) (bibliografia). Neste conto, Luísa Marques da Silva consegue arranjar uma técnica narrativa francamente interessante, incomum e bastante bem conseguida. A história é contada de forma fragmentária, através de depoimentos das várias personagens que a protagonizam. Não é bem epistolar, pois não se trata de cartas, mas é semelhante. Consegue até fazer transparecer em cada depoimento a personalidade de cada personagem, apesar de essas personalidades tenderem a ser algo unidimensionais: uma é socióloga e é só nessa qualidade que escreve, outra é adolescente e tudo quanto escreve está carregado de clichés teen, outro é poeta e só escreve em verso, etc. Mas apesar disso, a técnica é interessante o suficiente e está suficientemente bem aplicada para que bastasse haver uma boa história para contar e o resultado seria bom.
E o problema é precisamente esse: a boa história não existe.
No seu lugar o que existe é uma historieta que tem claramente a ambição de ser divertida mas à qual não achei graça alguma (sim, eu sei, o humor é sempre subjetivo), sobre uma bizarra família — dos quatro filhos só um é humano; os outros são um orc, uma elfa e um minotauro — que depara, em Tavira, com uma nave alienígena que se despenha e logo em seguida é alvejada por uma segunda nave alienígena, seguindo-se uma aventura que podia ter algum interesse se fizesse algum sentido.
Mas faz muito pouco. Suponho que talvez pudesse funcionar como aventura infanto-juvenil, uma daquelas fantasias científicas destrambelhadas que por vezes se encontram em desenhos animados ou em BD, mas parece-me que tal como aqui se encontra nem isso, pois precisaria de ser muito menos expositiva do que é. De ter uma ação mais explícita e menos cortada por apartes. No final, o que fica é o já nosso bem conhecido sabor a oportunidade perdida. Pena.
Conto anterior deste livro:
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