sábado, 11 de maio de 2019

Lido: Morcego do Mar

Ler romances-colagem proporciona experiências muito diferentes consoante já se conheçam as histórias que estiveram na sua base ou ainda não. Um exemplo claro disso foi a forma como eu li este Morcego do Mar, uma novela que julgo ser inédita e escrita de propósito para este livro. Tenho absoluta certeza de que a li de uma forma diferente de qualquer leitor que não tivesse tomado contacto prévio com as várias outras histórias de que o livro se compõe e também com aquelas que fazem parte do mesmo universo ficcional e não foram usadas para o construir.

Gerson Lodi-Ribeiro começou por escrever os seus contos e noveletas sem nenhuma ideia de os reunir mais tarde num romance-colagem. E fê-lo como muitos escritores o fazem: pegando em temas que lhe despertaram o interesse e combinando-os com um ambiente ucrónico e um grupo de personagens (sobretudo uma personagem: o vampiro de Palmares propriamente dito) que foi desenvolvendo história a história, sem perder demasiado tempo a fixar a continuidade. Eu tenho quase certeza disto porque fui lendo essas histórias, se não todas pelo menos a maioria, à medida que foram sendo publicadas. E é com esse conhecimento de base na bagagem que me lancei à leitura desta novela.

Apesar de a coluna vertebral da série se desenrolar numa região razoavelmente contida, aquilo que na nossa realidade é o Brasil e nesta realidade criada por Gerson Lodi-Ribeiro são três estados independentes, os Três Brasis, e apesar de as histórias serem quase sempre protagonizadas pelo Vampiro de Palmares, sempre houve algumas dessas histórias que extravasaram tais limitações. Uma das histórias pertencentes à série, por exemplo, relata um jogo de futebol, num presente alternativo, entre as seleções de Palmares e do Brasil, sem a presença de vampiro nenhum. Outra revisita as lendas sobre Jack the Ripper e desenrola-se na época e no ambiente, Londres, dos ataques atribuídos a esse misterioso assassino. São histórias que sempre me pareceram algo laterais ao resto das noveletas e novelas. Mas quando se reúnem essas histórias para fazer um romance-colagem é necessário anular as lateralidades (ou deixá-las de parte, como não canónicas), explicá-las, trazê-las para dentro do fluxo narrativo geral.

E é isso o que esta novela faz relativamente a uma delas. O Vampiro de Palmares tem de aparecer em Londres em finais do século XIX? Muito bem, vamos então encontrar uma forma lógica de o levar à Europa a tempo. E, no caso, a viagem até à Europa passa pela América do Norte.

Aqui, por motivos geopolíticos complexos, a jovem nação de Palmares envolve-se na guerra de independência dos Estados Unidos décadas depois dos acontecimentos de Capitão Diabo das Geraes, mas mantendo boa parte dos mesmos protagonistas. A primeira parte da novela é preparatória, dedicando-se essencialmente a desenvolver os motivos, as tensões e as hesitações relacionadas com a aliança entre os palmarinos e os revolucionários norte-americanos. Mas o fulcro da história é a parte final.

Em grande parte porque é nela que se concentra praticamente toda a ação. Palmares não pretende enfrentar diretamente o poderio do Império Britânico, mas além de poder fornecer armas aos revoltosos, dispõe de uma arma secreta. Secretíssima. Uma criatura capaz de ver bem durante a noite, e por isso capaz de capitanear um navio silencioso por forma a impedir o desembarque no porto de Boston das tropas que uma vasta frota traz de Inglaterra para defender os interesses da coroa. Ou pelo menos de tentar, lançando um violento ataque com táticas de guerrilha naval, apesar da imensa inferioridade numérica.

É que a coisa corre bem, mas não inteiramente, e o Vampiro acaba por desaparecer na noite. Com ele, desaparecem também os poucos navios da frota inglesa que se salvaram do ataque noturno, de volta a mar aberto, de volta a Inglaterra. A independência americana fica praticamente assegurada. E embora quem não conheça de antemão as histórias que antecederam este livro possa ficar na dúvida quanto ao que terá acontecido ao protagonista, quem as conhece não tem dificuldade em perceber. E voltamos assim ao início deste texto.

Esta é uma novela intercalar. Preparatória. Funciona bem para o que se pretende: levar o protagonista do ponto A para o ponto B. É eficaz. Mas falta-lhe alguma da acutilância que as histórias que tiveram publicação independente têm.

Contos anteriores deste livro:

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