O ano é 1969. Alegadamente convicta de que a literatura de FC é aquela que "reúne a preferência do público ledor", segundo se afirma na introdução, a Sociedade de Expansão Cultural decidiu arrancar com uma coleção de ficção científica, convidando para isso um autor da casa que já antes tinha publicado uns contos passíveis de serem categorizados como tal: Sebastião Alves Morgado, nome aqui abreviado para S. Alves Morgado. O resultado é este A Morte da Terra (bibliografia), o único romance de FC produzido pelo autor.
E, que se saiba, a coleção ficou por aí.
Lendo o livro compreende-se porquê, ainda que as explicações que este contém possam ser várias e até certo ponto contraditórias.
Com efeito, se o encararmos sob o ponto de vista estrito da FC, o romance deixa muito a desejar. Não tanto por o tom ser decididamente juvenil, talvez, muito embora os leitores "sérios" de FC tendam a desdenhar obras tão claramente juvenis, o que talvez não tenha ajudado às vendas. Mas sobretudo porque a FC de Alves Morgado é muitíssimo anacrónica, mesmo para um ano já tão remoto como 1969, e muito ignorante no que toca ao funcionamento do mundo real. Isto é, o mundo físico, os planetas e as estrelas, as suas órbitas e as suas características.
Lê-se este romance como se leem as histórias mais antigas de Edmond Hamilton, com uns pozinhos de Júlio Verne, sendo que o autor francês escreveu no século XIX e Hamilton começou a publicar as suas histórias ainda nos anos 20 do século XX. Quase a entrar na década de 70, a maioria dos que apreciavam FC tendia a exigir um pouco mais de realismo. Não que já não houvesse nessa época obras de FC que se estavam olimpicamente nas tintas para a realidade física das coisas, atenção. Mas os autores mais populares não eram esses: era Asimov, era Clarke, e se é certo que também era Bradbury, que nunca teve no respeito pela ciência das coisas do mundo físico o seu ponto forte, não é menos certo que nunca foram muitos os autores capazes de ombrear com ele na aplicação de elementos fortemente literários a enredos de FC.
Acontece que também é possível ler este livro sobretudo como uma fábula política, e na verdade julgo que foi precisamente como tal que Alves Morgado o concebeu. A história centra-se num conflito entre a Terra e as suas colónias espalhadas pelo Sistema Solar, o que, se tivermos em mente que na época em que o livro foi escrito Portugal estava profundamente mergulhado na sua própria guerra colonial, percebemos que tem toda a relevância. Mais: a guerra que se prepara é entre a "tirania terrestre de fachada democrática" e a democracia verdadeira e total do "micro-universo joviano", i.e., Júpiter e os seus satélites. Aí, fruto de um ambiente mais favorável ao desenvolvimento humano, a ciência prospera e alcançam-se proezas tecnológicas que ultrapassam em muito aquilo de que a Terra é capaz, ao mesmo tempo que um pacifismo enraizado faz com que os jovianos só apliquem os seus conhecimentos às coisas militares num âmbito estritamente defensivo.
Ou seja: o romance tem as peripécias que seriam de esperar de uma história que se desenvolve em torno de uma guerra, ainda que as sequências estritamente de ação sejam poucas e não particularmente ativas. Morgado adota um tom mais descritivo, de observador externo, do que de participante, preferindo a análise dos grandes movimentos e das grandes ideias à adrenalina dos acontecimentos imediatos, e isto, se colide até certo ponto com o tom juvenil que o romance apresenta, ajusta-se como uma luva à fábula política.
No fim, é o Sol a resolver todos os problemas, desencadeando uma tempestade estelar tão violenta que todos os planetas interiores, Terra incluída, são reduzidos a nuvens de gás. Mais uma vez, enquanto ficção científica isto é muito mau: não só a ciência é disparatada, como também funciona como deus ex machina para resolver problemas de enredo que o autor parece não conseguir resolver de outra forma. Mas encarando o livro como fábula política até funciona, afirmando que pouco importam os sucessos dos ambiciosos e dos tiranos, no fim todos estão sujeitos às leis e caprichos da natureza.
A conclusão a que eu chego é, portanto, que este é um livro político. Um livro de oposição clara à ditadura portuguesa e à sua guerra colonial, e na verdade ao colonialismo como ideia e prática, que se serve de técnicas e muletas da ficção científica juvenil para tentar contornar a censura. Não sei se conseguiu: o fim prematuro da coleção indica que possivelmente não, mas haver ainda hoje bastantes exemplares pode ser sinal de que a edição não foi apreendida e destruída.
Se é um bom livro? Não creio que o seja. Como FC é bastante mau, pelos motivos descritos acima. Como FC juvenil, por maioria de razão, também é fraco. E enquanto livro político exige do leitor uma capacidade de descodificação, de leitura nas entrelinhas, que não serão muitos a ter, embora essa capacidade estivesse bastante mais desenvolvida na época em que foi publicado do que hoje em dia. A necessidade aguça a perspicácia.
Mas no fundo acaba por ser um livro razoável. Quem tenha a capacidade de o descodificar compreende-o, e está escrito de uma forma razoavelmente simples mas competente. Não foi leitura que me tivesse agradado por aí além, mas também não a achei repelente.
Este livro foi comprado. Os alfarrabistas são porreiros.
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