Nada como um conto (ou melhor, uma novela) profundamente dickiano para abrir uma coletânea de contos de Philip K. Dick.. Mas só mesmo com uma máquina do tempo quem escolheu esta história para abrir este volume poderia saber que se tornaria tão relevante para os tempos que estamos a viver neste momento. Sim, que ler hoje este Segunda Variedade (bibliografia) tem um impacto bem diferente, e bastante maior, do que teria se a novela fosse lida em 2017, o ano em que este livro foi publicado.
Porquê?
Por causa da guerra.
É que esta é uma história de guerra. Uma guerra longa que opõe as Nações Unidas à União Soviética, por motivos que os combatentes que a protagonizam já nem conhecem. E quando hoje olhamos em volta e vemos uma Rússia fascista a lançar, por interposta Ucrânia, uma guerra contra as regras internacionais corporizadas pelas mesmíssimas Nações Unidas, o arrepio de contemporaniedade é inevitável. E pior se torna quando nos lembramos que esta guerra do mundo real é em grande medida travada através de drones, veículos não tripulados de vários tipos, e a história de Dick se centra no perigo constituído por máquinas auto-replicantes que os americanos criaram para tentarem defender-se dos ataques russos... e que depois lhes fugiram completamente ao controlo.
Há muito em comum entre este enredo e as ideias que estão na base dos filmes do Terminator, embora aqui esteja ausente o elemento de viagem no tempo presente na obra de Cameron. Mas o mundo descrito por Dick é muito parecido ao mundo futuro de onde a personagem de Swarzenegger vem: um mundo arruinado, uma distopia absoluta, onde uma Terra devastada é palco de uma guerra de extermínio movida por máquinas contra os últimos resistentes da espécie humana. Que aqui não exista Skynet pouco importa. Que nesta novela haja três lados e não dois, por mais difusas que sejam as fronteiras entre esses três lados, importa ainda menos. Mas já tem mais importância que o fulcro do enredo, aquilo que o faz mover, seja outro. Ou seja: o cenário é muito semelhante, mas as histórias contadas são diferentes.
Os filmes da franquia Terminator centram-se na tentativa de salvar um combatente da guerra futura, sem o qual a derrota face às máquinas seria inevitável. Mas, fiel a si próprio, Dick centra-se na própria infiabilidade daquilo que os olhos nos dizem, na impossibilidade de certezas quanto à natureza das coisas. É que as máquinas nesta história arranjaram uma forma infalível para se infiltrarem nos bunkers russos (e será que só russos?): transformaram-se em androides praticamente indistinguíveis de pessoas comuns, salvo pelo facto de serem produzidos em massa, em séries de "pessoas" todas iguais. As variedades de que o título fala. E resulta. A guerra está prestes a terminar quando, a um muito delapidado bunker de tropas da ONU, chega um soldado russo com uma mensagem: a guerra está quase a ser perdida. Não por eles, russos, mas por toda a humanidade. Os da ONU desconfiam, mas vão investigar. E assim arranca um enredo dickiano no qual nada é realmente o que parece.
Ler esta história em tempo de guerra é particularmente terrível. Não que já existam androides assassinos a exterminar combatentes humanos, mas a desumanidade nas trincheiras é tal que é quase como se houvesse. E há evoluções tecnológicas que vão nesse sentido. Parece ser apenas questão de tempo até se chegar a este ponto, e isso é de arrepiar o mais fleumático.
Este é uma história invulgarmente política para o que é hábito em Dick. É uma novela antiguerra, cuja mensagem principal, além da ideia habitual de não se dever acreditar naquilo que à primeira vista parece ser real, é que da guerra não saem realmente vencedores, só derrotados, e que em última análise derrotados seremos todos.
É uma ótima história. Uma história perturbadora e de toda a relevância para os dias que vivemos.
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