Dizer-se que não há regra sem exceção é um lugar-comum dos mais aborrecidos, mas não deixa de tender à verdade, especialmente quando essas regras e exceções se referem a conjuntos alargados de elementos. E a literatura pulp é um conjunto alargado de elementos, pelo que quando eu digo que não gosto de pulp, coisa que faço com regularidade e verdade, fica sempre entreaberta a porta para a chegada de alguma exceção que contrarie a regra.
Este romance de Renato Carreira quase foi essa exceção. Quase.
Se se tivesse mantido até ao fim com as características que mostrou no início, tê-lo-ia sido. De início, até chegar talvez a metade do livro, O Fim Chega Numa Manhã de Nevoeiro é uma ficção pulp de uma forma muito assumida e consciente, mas que não se leva a sério, mostrando uma autoironia bastante interessante. Com as características boas do pulp — a prosa ágil, o enredo movimentado, etc. — mas sem que os seus defeitos — clichés, caráter formulaico, personagens unidimensionais, por aí fora — sobressaíssem demasiado, ou pelo menos envolvendo esses defeitos em ironia, como quem diz "eu sei que vocês sabem que isto é uma treta, mas estou-me a divertir e espero que vocês também estejam". E a leitura flui entre sorrisos.
Mas com o avanço do romance, essa frescura vai-se perdendo.
Será isso que explica que quando a leitura se encerra a sensação que fica é que qualquer coisa se perdeu pelo caminho. Que se acabou de ler uma história pulp com algum interesse, mas apenas uma história pulp, tão repleta de clichés e tão formulaica como qualquer outra. Fica de mais positivo a ironia de desconstruir o mito de D. Sebastião, desfazendo séculos de exaltação do rei-herói pátrio que um dia haveria de regressar para pôr ordem nesta bandalheira e retratando essa figura como um velho e poderoso taumaturgo pronto para instaurar o seu reino maligno, matando mundo e meio ao fazê-lo. E fica a pena por tão promissora ironia não ter conseguido soltar-se do lastro de clichés criado pelo ambiente de fantasia urbana, cheio de vampiros e feiticeiros e mais ou menos discretas criaturas mágicas, escondidas de olhos indiscretos nos interstícios do mesmo mundo que nós, simples mortais, habitamos e por o protagonista que Carreira vai buscar ao policial negro também ter trazido consigo todos os clichés do género, incluindo a inevitável femme fatale que o deixa embeiçado e acaba por traí-lo.
Se Renato Carreira tivesse querido ou conseguido subverter a estrutura narrativa que escolheu para o seu romance, talvez todos estes clichés servissem como efeitos poderosos de prestidigitação literária, elementos de reforço de um truque que leva o leitor a instalar-se confortavelmente no sofá do que já conhece para no fim lhe tirar o tapete, mergulhando-o em algo de novo. Durante a primeira parte do romance pareceu-me (ou nutri a esperança de) que era precisamente para aí que a história se encaminhava. Mas não, ou pelo menos não de uma forma eficaz. Há no desenlace do enredo uma certa subversão da jornada do herói, mas é uma subversão tão ambígua que não tem o poder necessário para criar esse efeito de "ha, por esta não esperavas tu!" E assim, o romance termina como uma mera história pulp.
Será uma história pulp genericamente bem feita e com alguns elementos realmente interessantes, mas é apenas uma história pulp. É muito provável que agrade a quem goste de histórias pulp, mas quem tiver alergia a clichés o mais certo é não gostar. É um livro que entretém; se foi apenas esse o objetivo, ele foi alcançado. É também um livro que teria potencial para ser bastante mais e pela parte que me toca tenho pena que não tenha querido ou conseguido sê-lo.
Não é mau. É pelo menos razoável, talvez um pouco mais que isso. Mas podia ter sido bem melhor.
Este livro foi comprado.
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