E, subitamente, eis que a ficção científica volta a assomar nas ficções de Jorge Luis Borges. Não uma ficção científica "pura e dura", naturalmente, mas uma FC à Borges, impregnada de surrealismo, fantástico e alegoria.
Esta Utopia de um Homem que Está Cansado acompanha um homem (cansado, obviamente) que subitamente se vê num futuro longínquo, sem saber bem nem como nem porquê. Mas ao contrário das utopias tecnofuturistas que a FC tradicional nos apresenta, este futuro de Borges é uma época de decadência voluntária, na qual as pessoas aprenderam a não ligar a distrações menores (tecnologia, ciência, o próprio passado ou futuro) e a aproveitar as suas longas vidas com coisas realmente relevantes, como a arte, até ao momento em que decidem que já viveram tudo e se dirigem ao crematório.
O motor do conto é, como de resto é tão comum em tantas histórias de FC, a estranheza. A estranheza do protagonista perante as ideias tão invulgares do seu interlocutor, sobretudo. O homem vindo do passado enche o homem do futuro de perguntas, perguntas a que este responde com interminável paciência. Como se fosse um velho avô a responder às perguntas de uma criança.
E é precisamente isso o que Borges pretende com o conto. O seu homem que está cansado é um velho, cansado da vida e das coisas irrelevantes (a seu ver, claro) que tanto prendem a atenção dos jovens, dos homens ainda não cansados. A decadência voluntária da sociedade futura é um espelho da decadência do corpo e do espírito com o avançar da idade. Ou do cansaço. Por isso o conto é apresentado como uma utopia. Trata-se de uma reflexão de alguém que se aproxima do fim da vida (O Livro de Areia foi publicado no ano em que Borges fez 76 anos, afinal): retirando da equação o supérfluo, o que resta? O que é ainda desejável?
E por isso, este conto, que não é ficção científica pura, longe disso, é boa ficção científica porque como sempre acontece na boa FC usa o futuro para falar do presente.
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