Antes de começar, lanço um alerta aos eventuais leitores destas palavras. Eu tentei, juro que tentei. Matei a cabeça em busca de uma maneira. Mas falhei. Não consegui descobrir forma de falar capazmente deste livro sem revelar elementos fulcrais não só do enredo, mas do final. Spoilers, em suma e em inglês. Portanto vou dar spoilers. E, por conseguinte, se tu és alérgico a spoilers, e sem querer dizer-te o que fazer, talvez prefiras passar adiante, ir ler outras coisas. Se passares deste parágrafo considera-te avisado: este texto contém spoilers. Quatro vezes já não deixa dúvidas a ninguém, suponho.
À primeira vista, Utopia 14 (bibliografia), romance que apesar de também ter este título em algumas edições na língua original é muito mais conhecido pelo outro título que tem, Player Piano, é uma distopia bastante comum. Num mundo futuro, a Humanidade de um intederminado pós-guerra entregou às máquinas toda a gestão da organização social, bem como a parte de leão da atividade económica. Talvez não em todo o planeta mas certamente nos Estados Unidos. Isto porque a governação humana levou à guerra e à catástrofe, pelo que se considerou que para proteger o futuro havia que proteger o Homem de si mesmo, afastando-o de posições em que pudesse estragar tudo.
Claro, as máquinas precisam de quem as conceba, construa e planifique a sua atividade, em grandes fábricas que funcionam como conglomerados. Por isso, existe na sociedade assim alterada uma casta especial, selecionada maquinalmente com base no QI — os engenheiros e administradores. O escol da sociedade. Os outros? Bem... os outros são descartáveis. Inúteis. Relegados a trabalhos menores, desnecessários, desconsiderados e mal pagos.
Utopia? Para alguns, sim. Para os outros, a grande maioria, a sensação de inutilidade e irrelevância, a imposição de uma inferioridade da qual são incapazes de sair e que talvez nem sempre seja verdadeira, é o fermento perfeito para a revolta. E a revolta está latente desde as primeiras páginas do romance, apesar de este se centrar na pessoa de um dos engenheiros, o dr. Proteus, filho de pessoa importante e diretor de uma fábrica igualmente importante em Illium, uma cidade fictícia nos Estados Unidos, mais propriamente no estado de Nova Iorque.
É principalmente pelos olhos deste engenheiro que o leitor vai descobrindo aquela sociedade e as suas contradições e insuficiências. E digo que é principalmente porque o rei de um reino asiático também anda a deambular pelas páginas do romance (e pelos EUA), acompanhado por um agente do Departamento de Estado cuja função é sobretudo tentar convencê-lo de que a maneira americana de fazer as coisas é a melhor. Sem qualquer sucesso, não só porque há muita coisa que se perde na tradução mas também porque as contradições da utopia americana saltam aos olhos dos estrangeiros.
Há muito de ironia neste artifício, ainda que o resto do romance, as páginas que seguem Proteus, pareça a princípio bastante despido dela. Aí, a ironia começa a aparecer quando Proteus toma contacto com os desocupados e com o seu estilo de vida, encontra neles qualidades de que não suspeitava, e se descobre idealista, deixando de acreditar na máquina social de que faz parte e de que beneficia diretamente. E decide fugir dela, embora não saiba bem como.
A ironia acentua-se quando ele parte para o retiro anual nos "Prados", cada vez mais decidido a mandar tudo às urtigas e tornar-se lavrador. Os "Prados" são uma ilha onde se realiza um daqueles acampamentos corporativos, destinados ao convívio e descanso das classes privilegiadas. É uma instituição... uma instituição que Vonnegut retirou diretamente do mundo real e apresenta como a coisa absolutamente ridícula que é.
E depois disso o gozo só se torna cada vez mais descarado. Proteus é encarregado de investigar um grupo subversivo, infiltrando-se nele, e para dar credibilidade à infiltração é despedido e despojado de todos os privilégios. No fundo, fazem-lhe precisamente o que ele já planeava fazer por si próprio, e ele fica com sentimentos algo ambivalentes sobre o sucedido. Mas lá se vai infiltrar no grupo, acabando por se assumir como líder da conspiração, sem saber bem como. E, depois de uma série de peripécias, arranca a revolução. Com Proteus entre os cabecilhas.
Só que há um problema. Ainda que os cabecilhas sejam de uma forma geral dissidentes da classe dirigente, pessoas com experiência e capacidade para organizar sistemas complexos, quem realmente faz a revolução não são eles. São os descartáveis, aqueles que as máquinas tinham determinado não terem a capacidade intelectual necessária para serem úteis à sociedade. Em suma: os idiotas. E os idiotas comportam-se como idiotas, mergulhando numa orgia de destruição desorganizada que rebenta com todos os planos cuidadosamente traçados por Proteus e pelos outros conspiradores. A revolução acaba derrotada, como era inevitável desde o início, e os dirigentes não têm alternativa a não ser entregar-se às autoridades da velha sociedade desumana que tinham tentado destruir. Porque os seus humanos concidadãos não passam de um bando de idiotas.
Irónico, cínico, muito pouco otimista, este romance é uma das distopias clássicas da FC, que quase nada têm a ver com a recente onda de distopias juvenis que fizeram as delícias de uma legião de leitores. Não faço ideia se teve, desde que foi publicado há quase 70 anos, uma quantidade comparável de leitores, mas duvido. Sei, sim, que não é livro para todos: a malta pela-se por um bom finalzinho feliz em que o rapaz fica com a rapariga, ou vice-versa, e aqui não encontra nada que se pareça. Encontra um livro provocatório. Daqueles livros que, mesmo que não se concorde com as ideias que lhe subjazem (e eu não concordo com várias delas), nos deixam a pensar. Um bom livro.
Este livro foi comprado.
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