Há sempre a tentação de pegar na literatura, mesmo na pré-literatura das histórias de transmissão oral, e tentar transpô-la para a vida real, como se estas histórias contivessem ensinamentos fundamentais para a vida do ser humano. Por um lado percebo a tentação; afinal, é assim que aprendemos, através das narrativas que os nossos pais, professores ou outras pessoas próximas nos transmitem sobre o funcionamento do mundo. Por outro causa-me uma certa espécie que tanta gente encare a ficção que o é assumidamente como algo mais que isso mesmo: ficção. Histórias.
Isso vem-me às ideias em especial quando leio histórias como esta que os Irmãos Grimm não parecem ter alterado muito. É que O Rei da Montanha Dourada é daqueles contos nos quais o herói vai ter de suportar provações impensáveis, incluindo a decapitação, para alcançar o seu objetivo: a libertação de uma princesa de um feitiço que a mantém aprisionada. E eu fico a pensar de onde terá vindo esta ideia de que se aguentarmos um sofrimento extremo iremos acabar por alcançar todos os nossos objetivos porque os feitiços se quebram ou porque um deus qualquer se condói ou respeita o valor demonstrado.
É que o mito do sacrifício por um bem mágico superior parece estar disseminado por todo o planeta, ainda por cima. Sim, é fulcral na mitologia cristã ou, na verdade, em todas as mitologias abraâmicas (com resultados particularmente grotescos, muitas vezes, como a ideia de que ao se fazerem explodir os militantes islâmicos vão para um céu beatífico repleto de odaliscas virgens), mas não se restringe a elas, longe disso. Desconfio que é muito anterior, pela disseminação e pela multiplicidade de formas que assume.
É neste tipo de coisas que eu fico por vezes a pensar depois de ler estar histórias dos Grimm. Não nas histórias em si, que muitas vezes (e é o caso) nem são particularmente interessantes, mas naquilo que pode estar por trás delas. Na evolução das ideias que vieram desembocar nelas. E naquelas que a sua cristalização na palavra escrita pode ter ajudado a gerar.
As conclusões a que chego, quando chego a algumas (não é frequente, diga-se), nem sempre são bonitas.
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