Há pelo menos uma diferença significativa entre uma leitura e uma releitura, mesmo quando esta é apenas parcial devido às numerosas alterações que a obra lida sofreu numa nova edição, e mesmo que entre uma e outra distem décadas: a leitura tende a prender-se pouco em pormenores, dirigindo a atenção para o fluir da história e para os seus grandes traços gerais; já na releitura os pormenores tornam-se bastante mais presentes. Óbvios até.
Foi o que me aconteceu agora ao reler este A Queda (bibliografia), noveleta de João Barreiros que abre o Terrarium. E sim, embora este texto seja novo enquanto parte individualizada do livro, considero-o uma releitura porque parte dele já constava do texto de abertura da edição original, pelo menos nas suas linhas gerais.
Trata-se, basicamente, da história de um assalto. Um tal Mr. Lux é acordado por um alarme e descobre que um grupo de ladrões penetrou num lugar secreto onde ele guarda umas coisas de imenso valor, descobrindo ao mesmo tempo que o lugar, afinal, não é tão secreto como supunha. Que coisas? McGuffins. O texto, de resto, abre com uma citação de Hitchcock em que ele explica o conceito, com a ironia que o caracterizava, e esssa é logo a primeira referência que contém. Mas não a última, que os McGuffins são vários e cada um constitui a sua própria referência (o próprio Falcão de Malta, um dos mais famosos McGuffins do cinema, se não o mais famoso de todos, faz a sua aparição), num jogo referencial entre autor e leitor a que as personagens, muitas vezes, estão completamente alheias. Afinal, estas são quase todas alienígenas (incluindo o Mr. Lux) e as referências são bem terrestres.
Além disso, nem só de McGuffins se faz o jogo de referências. Ele começa, de resto, na própria capa, que nesta edição mantém uma coisa em comum com a da edição original: a imagem da capa de uma velha revista pulp, a qual é também um dos objetos roubados ao Mr. Lux.
Mas não é só o jogo de referências que faz aparecer os McGuffins. Estes são usados como é devido: servindo como truques literários para desenvolver a história e apresentar todo o universo ficcional em que esta se desenvolve. De resto, neste A Queda é a apresentação do cenário que mais importa: um cenário de FC bastante típico, no qual uma quantidade de espécies alienígenas dos mais diversos géneros chegam à Terra, em fuga do centro da Galáxia de onde outros alienígenas mais poderosos as haviam expulsado, e aqui se instalam, independentemente da vontade humana, parcialmente à superfície, parcialmente em órbita num gigantesco anel formado com os restos mais ou menos desmantelados das suas naves interestelares. E o resultado é o caos.
É nesse caos que o Mr. Lux é roubado, e é também nele que vai tratar de encontrar quem o roubou, não só para recuperar os objetos roubados mas também para se vingar da impertinência. Justiça pelas próprias mãos, dizem vocês? Claro. Esperavam o quê? O Lux é um durão, com fartura de truques na manga, ainda que os assaltantes também tenham os seus. Mas sim, tem sucesso. Algum. Parcial.
Mas é boa, a noveleta? Claro que é. Estamos a falar do Terrarium.
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