segunda-feira, 9 de maio de 2022

Robert Silverberg: A Dança do Sol

É curioso, e eu constato-o com frequência, como tantas vezes acontece uma obra de ficção científica, esse género supostamente escapista e desligado do ambiente cultural que o rodeia, estar indissociavelmente ligada à época em que foi escrita. E não me refiro aqui ao movimento literário a que pertence, ainda que isso também tenha a sua influência; afinal de contas, o ciberpunk não poderia ter nascido na época da new wave e vice-versa. Refiro-me a características mais fundamentais da obra em si.

Finais dos anos 60, início dos 70. "Cá fora", no mundo americano exterior à FC, era a época dos hippies e do LSD e da guerra do Vietname. E na FC, que supostamente nada tem a ver com nada disso? Bem, foi a época em que o género mais se ocupou dos limites da realidade, mais explorou experiêncuas alucinatórias, mais questionou a guerra e o expansionismo do homem branco e, por extensão, do homem terrestre. Quem acredita em coincidências talvez explique assim que um género que supostamente nada tem de político e nada tem a ver com crítica social se mostre tão sintonizado com a política e as convulsões sociais do seu tempo. Talvez se escape com essa explicação que nada explica.

Mas engana-se e engana. A verdade é outra. A verdade é que o género nunca foi nada disso. E este A Dança do Sol (bibliografia), de Robert Silverberg, é apenas mais uma das muitas provas.

Silverberg leva-nos a um planeta distante, onde a humanidade se dedica a exterminar uma espécie alcunhada de "comedores", a fim de abrir caminho para a colonização. Mas o protagonista, um homem com sangue ameríndio, começa a nutrir dúvidas sobre a natureza dos "comedores" e a necessidade do extermínio, e decide estudá-los, mergulhando no seu mundo. O que descobre estarrece-o: o que estão a fazer é um crime. E os paralelos com o que os EUA estavam a fazer na época em que o conto foi escrito, 1969, são tão óbvios que me escuso de os explicar. Vocês não são parvos nenhuns e compreendem.

E no fim do conto é a própria realidade a ser posta em causa, de uma forma francamente dickiana.

Este não é conto de grande extrapolação científica ou tecnológica; não é isso o que interessa aqui a Silverberg (na verdade, raramente foi isso o que interessou a Silverberg ao longo de toda a carreira). É conto de extrapolação social e de comentário social. E é bom.

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