quinta-feira, 25 de abril de 2019

Achas que vives numa democracia completa? Pois enganas-te redondamente.

A esquerda tem feito um péssimo trabalho a explicar às pessoas a ideia de que não existe democracia real sem haver também democracia económica. E sem isso, não vamos lá.

É possível que parte do motivo para tão mau trabalho seja as várias esquerdas darem pesos muito diferentes às duas partes desta equação. Alguma esquerda, com demasiados exemplos históricos que, por óbvios, me dispenso se citar, tende a ignorar a democracia política em prol da económica (esta última mais teórica que real, ainda por cima, pois em todos esses casos se formou uma casta com poder político e poder económico a condizer). Pelo contrário, outra, que tende a só se distinguir da direita na retórica, ignora a democracia económica, resumindo a equação democrática à política.

Não fossem essas divergências, julgo que seria um conceito bastante simples de explicar. Tão simples, na verdade, que essa explicação talvez bastasse para erodir significativamente alguns mitos urbanos que ajudam a direita a manter a óbvia preponderância que detém na opinião publicada.

Tudo radica no conceito de poder e nas formas de que esse conceito se pode revestir.

A democracia, como se sabe, baseia-se na ideia de que todos os membros de um determinado grupo humano detêm o mesmo poder para determinar a direção política desse grupo de que fazem parte. Nas democracias políticas, na maior parte dos casos, esse poder uniforme e universal é exercido por intermédio do voto e emprestado a representantes cuja função é agir em obediência às propostas sufragadas, seja pelo todo social, seja pelos eleitores de uma determinada fação política (quando a representação se faz em estruturas parlamentares).

E nunca é perfeita. Isto é, existem sempre desvios, maiores ou menores, a este ideal de universalidade do poder, e a democracia é tanto mais avançada quanto menores forem esses desvios.

E parte dos desvios (e na verdade uma parte considerável) vem diretamente da economia.

A questão é que numa sociedade cuja economia se baseie em dinheiro (e em qualquer sociedade cuja economia se baseie em dinheiro, não só no capitalismo financeiro em que vivemos), este confere poder a quem o tem. Esse poder pode ser tão básico como o poder de escolher o que consumir e o que deixar nas prateleiras das lojas, ou seja, o poder de decidir onde (e se) gastar o dinheiro que se tem, poder esse que tem um impacto direto sobre toda a sociedade, mesmo em sistemas de economia planificada, quanto mais não seja por poder gerar maior ou menor proporção de desperdícios, o que tem impacto na eficiência da produção, o que tem impacto na eficiência da economia e por aí fora.

Mas quando a desproporção entre quem tem mais e quem tem menos aumenta, começa a fazer-se sentir um outro poder, mais insidioso e mais diretamente político: o poder de levar outras pessoas a fazer o que se quer que elas façam.

O que também tem vários graus. Pode tratar-se apenas de poder contratar alguém para fazer um trabalho que não se quer ou não se tem capacidade para fazer. Mas no extremo oposto desta escala está a corrupção, a compra de votos, a compra de influência política, a compra de leis que beneficiem especialmente quem detém mais poder financeiro, e por aí fora.

É fácil de perceber até que ponto isto distorce e deturpa a democracia. Quando deixamos que a vontade e os interesses de uns poucos se sobreponham à vontade e aos interesses da maioria, porque esses poucos são capazes de brandir um poder económico despropocionalmente elevado, estamos a deixar que a democracia se deteriore, mesmo que no campo formal e institucional ela pareça funcionar na perfeição.

Um exemplo prático: Portugal tem uma instituição chamada Comissão Permanente de Concertação Social. Nela têm assento representantes do governo, representantes das confederações patronais e representantes das confederações sindicais. Ou seja: representantes do poder político, representantes do poder económico, e representantes do resto do mundo laboral. Independentemente do que se possa pensar sobre a utilidade de uma tal instituição para manter a paz social, é indiscutível que ela reconhece institucional e politicamente a vasta diferença de poder económico entre o punhado de patrões e a grande massa de trabalhadores. Quando se faz depender do acordo da concertação social coisas como o montante do salário mínimo está-se a dizer que uma fração diminuta da população, o patronato, tem tanto ou mais poder político que a vasta maioria.

E isso não é democrático.

Porque a democracia, como se sabe, se baseia na ideia de que todos os membros de um determinado grupo humano detêm o mesmo poder para determinar a direção política desse grupo de que fazem parte.

Pode-se achar que a democracia deve ser limitada ao mero formalismo político. É, basicamente, o que a direita pensa. Mas a esquerda, que tem na democracia económica um dos seus principais esteios e tem-se deixado demasiadas vezes (e muito por culpa própria) acantonar em posições defensivas relativas não só à economia e ao mundo do trabalho mas à própria ideia da democracia, teria a obrigação de deixar muito claro

- que a luta contra a desigualdade é uma luta pela democracia
- que a democracia só se completa quando for tanto política como económica
- que uma democracia realmente avançada é uma democracia capaz de reduzir as diferenças de poder entre os vários grupos de que se compõe
- que políticas que fomentem a desigualdade, qualquer desigualdade, são na sua essência políticas que atacam a democracia

E por aí fora.

Isto é particularmente sério num momento em que o ideal democrático está em erosão acentuada. Pudera: quando a democracia económica não existe, haver democracia política é equivalente a ter-se apenas duas pernas de uma cadeira, deixando-a tão instável que muita gente pode sentir-se tentada a pensar que não serve para nada. Especialmente quando quase ninguém fala das duas pernas em falta.

É mais que tempo de começarmos a falar. Consistentemente. Constantemente. Não (nunca!) em oposição à democracia política, mas como complemento urgente.

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