quarta-feira, 3 de abril de 2019

Lido: A.K.A.

É frequente surgir a ideia, explícita ou implícita, de que a influência de uma obra de arte está diretamente dependente da sua qualidade, mas a existência de numerosos casos de obras de qualidade bastante reduzida que no entanto tiveram um impacto imenso em obras posteriores sugere que não será bem assim. Um exemplo óbvio são os contos populares, muitos dos quais só ganham alguma qualidade literária quando um escritor competente pega neles e lhes dá algum corpo. Poder-se-á pensar que, pelo contrário, se trata mais de uma questão de popularidade, mas a existência de numerosas obras praticamente esquecidas que no entanto tiveram um impacto significativo em obras subsequentes é uma pista de que também talvez não seja bem assim. Como exemplo, pouco se fala hoje do Lorde Dunsany, e no entanto este autor teve forte influência numa série de outros autores, alguns bem famosos (Lovecraft e Tolkien são apenas dois deles), que por sua vez influenciaram gerações de autores mais recentes. O próprio Tolkien começou por influenciar outros autores numa época em que era apenas um autor de nicho, não o clássico que é hoje.

Isto não vem a propósito de nada, propriamente. É uma série de ideias que me vieram à mente depois de ler este livro, quando me pus a pensar nos que o poderiam ter influenciado. Ou melhor, num em particular, cuja influência me parece evidente: Um Estranho numa Terra Estranha, do Heinlein.

A.K.A. é, tal como o romance de Heinlein, uma história ancorada na ficção científica mas que integra no enredo uma série de coisas mais ou menos místicas, diferenciando-se do Estranho no menor interesse em explicar o que vai acontecendo de uma forma razoavelmente racional. Tal como no romance de Heinlein, este romance de Rob Swigart tem como principal protagonista um milionário excêntrico que viaja pelo espaço — ou que simula fazê-lo, pelo menos — embora esse protagonista, no caso de A.K.A. esteja basicamente ausente ao longo de quase toda a narrativa. Ambos os livros têm boa parte do enredo a girar à volta da criação de uma nova seita, do sexo mais ou menos desenfreado, e da relação entre uma coisa e a outra. Em ambos, as autoridades não acham grande graça à brincadeira e tentam exercer os seus poderes repressivos, sem grande sucesso. E há uma série de outros detalhes que me levam a crer que Swigart foi fortemente influenciado por Heinlein, pelo menos para escrever esta obra — publicada em 1978, 17 anos depois de Um Estranho numa Terra Estranha.

Claro, está longe de ser uma cópia. Para começar, a abordagem é algo diferente. Ao passo que Heinlein tinha sobretudo a política em mente, pretendendo com o seu romance divulgar uma série de ideias sobre a organização da sociedade humana, Swigart parece pretender sobretudo divertir-se, servindo-se para isso profusamente do grotesco de situações e personagens. O livro começa com a partida de um multimilionário, Avery Krupp Agenblaue (estão a ver de onde vem o título? Não? Olhem para as iniciais) para o espaço "intergalático", a bordo de uma nave propulsionada por "orgones", e se acham que esta palavra se parece com orgasmo não andam longe porque aparentemente são estas as partículas que insuflam as coisas de apetite sexual. O que tem consequências, pois com a expulsão para o ambiente de tantos orgones na altura do lançamento da nave, as pessoas que a ele assistem, sobretudo mas não só, ficam de tal forma contaminadas de desejo que passam o livro inteiro na queca com tudo o que mexe. Bem, não será bem assim mas é quase.

E o livro é todo assim: sexo e paródia, entretecidos com vários mistérios em volta do Avery Krupp Agenblaue, que não só parte para o espaço a bordo de uma nave propulsionada por um motor no mínimo insólito, como desaparece assim que regressa. Entretanto, a seita que se desenvolve em volta dele, a qual, como todas as seitas, promete a Verdade, maiúscula e itálica, que na sua variação gira em volta de A Luz Azul, seja lá o que isso quer dizer, promete também que Agenblaue reaparecerá na convenção mundial marcada para tantos do tal, onde responderá a todos os mistérios. E não há LSD, propriamente, mas há uns fungos com propriedades alucinogénicas, e umas térmitas que exalam feromonas priápicas, tudo muito peace and love and mushrooms. Hippy-ki-yay, onmifuckers!

Assim se vai caminhando para o clímax, que acaba por chegar, devidamente orgásmico, pois a tal convenção degenera num grande bacanal. As respostas acabam por chegar, algumas, deixando outras questões no seu lugar. E fim, que já se faz tarde e o autor já se divertiu o suficiente. O livro não é lá muito bom, mas diverte qb, embora convenha ter em mente que foi escrito por um homem branco WASP nos anos 70 do século XX e isso acaba sempre por vir ao de cima, especialmente quando há sexo metido ao barulho.

Venha o próximo.

Não faço ideia de como este livro me veio parar às mãos, mas já o tenho há pelo menos duas décadas. É dos tais livros que vão sendo eternamente preteridos por outros, por um motivo ou por outro, até que um dia se diz "é hoje!"

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