sábado, 9 de julho de 2022

Haruki Murakami: Crónica do Pássaro de Corda

Haruki Murakami é reconhecidamente um autor prolixo. Passando os olhos pelas suas obras nas livrarias saltam à vista vários livros razoavelmente anafados, ainda que nenhum o seja tanto como a sua obra mais conhecida, 1Q84. E esta Crónica do Pássaro de Corda insere-se no grupo de livros que podem receber sem grande levantar de sobrancelhas a designação de "calhamaço": são, nesta edição de bolso (ha! boa piada. Quem tem um bolso onde isto caiba?), 630 páginas de letra miudinha e texto denso.

Mas não foi por isso que levei tanto tempo a lê-lo: mais de um ano. Ou não foi principalmente por isso, melhor dizendo, visto que a extensão certamente contribuiu.

Peguei nele numa altura complicada da minha vida, e desde que o fiz a minha disponibilidade para ler (e a vontade, também) sofreu oscilações bastante grandes mas esteve de um modo geral significativamente abaixo do que é hábito. Passei por períodos em que não li nada, ou quase, e por outros períodos mais extensos em que me aborrecia sobremaneira pegar em alguma leitura que não fosse um conto, por não ter disponibilidade mental para encarar leituras mais extensas. E o pobre do Murakami não só ficou arrumado a um canto quando todos os outros livros sofreram o mesmo destino, como ainda por cima se viu preterido pelos outros quando eu resolvia sacudir o pó às leituras em curso.

Claro que neste contexto a apreciação da leitura foi prejudicada, muito embora eu continue a conservar uma boa capacidade de recuperação do fio às meadas literárias mesmo depois de longos hiatos e com outras leituras pelo meio. Boa mas não perfeita. Com tempos de leitura tão espaçados por hiatos tão longos suponho que seja inevitável que qualquer coisa fique pelo caminho.

Mais um pouco quando o livro lido é tudo menos simples. Murakami tece aqui uma densa teia de personagens, acontecimentos, tantas vezes bizarros, interligações, frequentemente tudo menos claras, mistérios vários. É fácil perder o fio à meada, mesmo para quem lê o livro com a pacatez das leituras sequenciais e contínuas. Mais fácil se torna se a leitura é ela mesma turbulenta.

O romance é escrito na primeira pessoa. O narrador e protagonista, um tal Okada, é um profissional que perde o emprego e se resigna a uma vida doméstica, alegadamente para escrever o romance que sempre quisera escrever e nunca tivera tempo. A mulher apoia-o... mas de repente desaparece sem dizer água-vai e a vida de Okada passa a ser regida pela sua busca. Mas antes ainda já começara a ver-se assolada pela bizarria. Um gato que desaparece, o que deixa a mulher à beira de um ataque de nervos, um telefonema de uma mulher misteriosa, um poço seco que o atrai, no jardim de uma casa abandonada no quarteirão em que mora, uma adolescente problemática que o trata como se sempre o tivesse conhecido e parece saber sempre mais do que o que diz. E por aí fora.

O livro é surreal, repleto daquela espécie de magia que se imiscui quase sem darmos por isso no ramerrame quotidiano. Ou por outra, "repleto" talvez não seja o termo mais adequado, pois ela aparece de mansinho, de forma ambígua, só se tornando clara já o número de páginas lidas se conta em centenas. Só no fim, talvez, o termo seja o mais próprio, visto que o caráter fantástico do livro vai sempre em crescendo, culminando numa sequência passada numa espécie de mundo secundário, um lugar onde Okada chega atravessando paredes que o teleportam entre o fundo de um poço e uma espécie de hotel de estranha topologia, onde acaba por travar um duelo violento.

Terminei a leitura com a sensação de que há neste livro simbolismos que não alcanço. Qualquer coisa relacionada com a cultura japonesa, talvez, ou talvez qualquer coisa de um caráter mais filosófico. Ou talvez nada, talvez seja simples sensação sem um fundo de verdade por trás. Talvez seja só consequência da instabilidade na leitura. Talvez. O certo é que me pareceu que há no romance várias meadas cujos fios ficam algures em suspenso, sem serem amarrados, ou sendo-o apenas parcialmente. Um exemplo, pedem vocês?

OK, um exemplo então. O principal motor de todo o romance, aquilo que mais contribui para fazer avançar o enredo é o mistério que rodeia não só o desaparecimento da mulher de Okada mas a própria natureza da família dela, e sobretudo do seu irmão. Não é o único, atenção: há por exemplo longos trechos que se relacionam com isso só de uma forma muito oblíqua e se debruçam sobre aquilo por que passaram os soldados japoneses durante e depois da II Guerra Mundial. Mas é o principal.

É que embora o próprio Okada seja basicamente um plebeu, um pequeno-burguês de origens modestas, a mulher é menina de boas famílias. Pai e irmão fazem parte da elite político-económica do Japão, facto que cria desde sempre problemas ao casal. Para piorar as coisas, o irmão é apresentado como uma criatura francamente sinistra, uma espécie de psicopata, frio, manipulador e por isso mesmo extremamente bem sucedido. Sim, há um certo ódio de Okada, que é, relembre-se, o narrador do romance, pelo cunhado, um ódio que o leitor passa boa parte do romance sem perceber bem se é justificado ou não.

E é precisamente essa figura sinistra a surgir no centro de tudo, dos vários fios de que se tece o romance. Mas se a sua ligação a alguns desses fios e às tantas vezes bizarras personagens que os protagonizam fica clara, a de outros não o fica de todo, é no máximo sugerida. E no fim, o grande homem cai num coma profundo mas ninguém parece ser capaz de dizer ao certo o que é feito dele. Há o tal duelo de que falo acima, mas também este tem resultados ambíguos, até porque é travado num mundo onírico que não é bem o nosso, embora tenha impacto direto sobre o nosso.

E os trechos relacionados com as campanhas japonesas na China e com as vivências dos prisioneiros japoneses nos campos de prisioneiros de guerra na Rússia também parecem não ter relação quase nenhuma com o corpo principal do romance, à parte um detalhe: o homem que os conta tem uma experiência trancendental no fundo de um poço onde é abandonado à morte e do qual consegue escapar de forma milagrosa, o que leva a que Okada procure alguma espécie de iluminação no fundo do poço seco na vizinhança da sua casa. Procure e encontre, o que justifica a digressão... mas mesmo assim esta parece demasiado extensa e detalhada para o impacto que tem na história principal.

Daí, julgo, esta impressão de que há qualquer coisa oculta no romance que não fui capaz de entrever. Por outro lado, também é possível que todos esses fios soltos sejam apenas isso, fios soltos, deixados por Murakami como uma espécie qualquer de comentário à imperfeição da vida. Esta, afinal, também é muito feita de fios soltos, de potencialidades nunca concretizadas, de histórias incompletas, de vidas que se cruzam brevemente com outras sem deixarem nelas grande rasto ou impacto. De imprevisibilidade. De caos.

Talvez seja esse o grande tema deste livro, o caos? Okada, afinal, passa o livro inteiro a ser confrontado com acontecimentos caóticos que lhe deixam a vida de pantanas, aos quais reage de forma quase instintiva sem saber bem o que está a fazer. A sua vida é dominada por outras pessoas, e ele é um barquinho na tormenta, tentando navegar o melhor possível com a sua pequena vela e o seu frágil leme. Sem saber bem como, quase só à força de teimosia e graças à ajuda de aliados que não compreende, acaba por conseguir o que queria. Mais ou menos, porque nunca nada é perfeito. No fundo talvez seja isso. Apenas isso.

É complexo, o livro, isso é. E bom. Mas não sei bem se gostei tanto como me parece que gostei. Talvez tenha gostado; afinal, o livro deixou-me a pensar e é sempre positivo quando isso acontece. Mas vai demorar bastante tempo até regressar a Murakami. Deverei regressar, mas não será em breve. É dos tais escritores de degustação lenta, o que não é nem bom nem mau, limita-se a ser.

Este livro foi comprado.

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