Esta é uma história algo estranha, não tanto por aquilo que nela se conta, mas pela forma como está concebida. Começa logo pela forma como Charles Nodier caracteriza este Paulo ou A Semelhança (bibliografia), "história verdadeira e fantástica", e continua com a forma como a estrutura, dividindo-a em três partes bastante distintas entre si, sendo que a história propriamente dita, a que tem como tema o Paulo ou a sua semelhança, só preenche a segunda dessas partes.
A primeira é praticamente uma declaração de amor à literatura fantástica. Poderia perfeitamente ser publicada de forma autónoma como artigo de opinião e, se fosse discutida como tal, eu teria algumas discordâncias de vulto a opor, pois Nodier vê a literatura fantástica como reduto da crença contra um mundo que na sua época já começava a laicizar-se, ao passo que a minha perspetiva é quase a oposta.
A segunda parte é a "história verdadeira e fantástica" propriamente dita. É a história de um pai desgostoso com a perda de um filho que conhece um rapaz, pobre, criado de outro homem, tão parecido com o filho — até no nome — que tenta persuadi-lo a tomar o seu lugar. Quer levá-lo para casa, levá-lo à mulher que sonhara que o filho ainda está vivo, dizer-lhe "olha, tinhas razão, aqui está ele". Mas o rapaz recusa: por mais que o arranjo lhe fosse vantajoso, pois o velho é rico e como seu único filho iria herdar, não se sente capaz de abdicar dos pais verdadeiros. É uma história bonita e bem contada. Uma história verdadeira? Talvez. Mas fantástica? Bem...
Com bastante boa vontade poderá achar-se que sim. Como se disse acima, a mãe do filho morto sonha que o filho está vivo — é isso, de resto, o que motiva a busca do pai — e pode interpretar-se o sonho como tendo visto, em sonhos, o sósia do rapaz a andar por aí. O sonho premonitório é um enredo clássico da literatura fantástica, é certo, mas aqui ele só é premonitório se for interpretado assim. Não é essa a interpretação que eu faço, mas por outro lado é verdade que esta história acaba por respeitar a definição de fantástico que Todorov criou muitos anos mais tarde.
A terceira parte, e também a mais curta, retoma o tom opinativo da primeira para lançar um ataque bastante beato ao espírito materialista. Nodier viveu em tempos de jacobinismo e por isso este ataque tem implicações políticas bastante claras, mas juntamente com a defesa da literatura fantástica da primeira parte quase transforma este texto num artigo de opinião com um interregno a meio destinado a contar uma história que se destina a ilustrar a opinião. Que esteja tudo muito bem escrito confunde as linhas e sublinha o caráter híbrido do texto. E também justifica que eu tenha gostado dele, apesar de discordar de Nodier em quase tudo.
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