Quando se lê um livro, seja ele qual for, é impossível não partir para a leitura com uma série de expetativas, quer estas sejam criadas por experiências anteriores com o autor, com o género, com a literatura da época ou até por coisas tão banais como a capa. Ou pelo menos é impossível não desenvolver essas expetativas no decorrer da leitura, à medida que o enredo se vai desenvolvendo ou que um conto se sucede a outro. Mas às vezes acontece que os autores tratam de fazer as expetativas dar umas cambalhotas valentes, o que tanto pode ser bom como mau.
Aconteceu isso com este livro de Charles Nodier porque, não só à partida, mas muito especialmente depois de ficarem para trás alguns contos, a última coisa que eu esperava encontrar nele era vestígios de ficção científica.
Mas foi precisamente o que encontrei neste João Francisco das Meias Azuis (bibliografia). Não de uma FC minimamente moderna, evidentemente, mas da proto-FC ao jeito da época... ou talvez já ultrapassada na época, visto que o conto é de 1832 e o Frankenstein da Mary Shelley é mais de dez anos mais velho
O protagonista desta história, o João Francisco das Meias Azuis do título, é visto na terra onde vive como um excêntrico, uma espécie de sonhador, sempre de olhos postos no céu. O narrador trava amizade com ele, para preocupação de amigos e conhecidos, e fica a saber que, segundo o próprio João Francisco (nome adaptado pelo tradutor; no original é Jean-François), este tem a capacidade de vislumbrar no céu aqueles que habitam nos outros planetas e estrelas. E não só os vislumbra como conversa com eles, sabendo por seu intermédio não só o que se vai passando nos seus próprios mundos mas também os acontecimentos que eles veem noutros pontos do nosso. O narrador não acredita, naturalmente. Quem acreditaria? Mas mantém o fascínio pelo homem e portanto também a amizade.
Até ao desfecho, momento em que o narrador e o seu pai se apercebem de que o das Meias Azuis fora capaz de transmitir a notícia da execução de certas personagens proeminentes (a história desenrola-se durante a Revolução Francesa) no preciso momento dessa execução, levando-os finalmente a crer nas histórias que ele contava. E aqui o passado justifica-se, pois nessa altura também ele já tinha morrido, de forma misteriosa e aparentemente por decisão própria, chocado com os horrores das execuções. Sim, estamos perante mais uma condenação da pena de morte, ainda que esta seja significativamente mais subtil do que a da História de Helena Gillet, sem o caráter de denúncia que essa história adota.
É uma boa história, esta. Independentemente do interesse adicional que me provocou por conter sementes de ficção científica, e mesmo com algumas daquelas características da escrita romântica que tendem a desagradar-me, a história é boa.
Contos anteriores deste livro:
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