Há livros que, pior piores que sejam, constituem marcos na evolução de um género literário e por isso devem fazer parte da bagagem de qualquer leitor desses géneros. A ficção científica tem alguns muito bons, mas também tem alguns bastante maus. Este John Carter (bibliografia), de Edgar Rice Burroughs, pertence ao segundo grupo.
Não que seja um livro despido de qualidades, atenção. Nenhuma obra se transforma em marco seja do que for se não tiver qualidades suficientes, mesmo que a qualidade global seja baixa, para levar os seus leitores a ignorar os defeitos e as deficiências. Até porque, como cada pessoa valoriza diferentemente as várias facetas da criação literária (e artística em geral), não é muito difícil que aqueles que dão um peso significativamente maior às facetas em que a obra x é boa do que àquelas em que é má acabem por a considerar bastante melhor do que realmente é. E vice-versa. Isto acontece com tudo e em todos os campos, e é um dos velhos, e pelos vistos eternos, motivos de conflito entre os apreciadores dos vários géneros literários e aqueles que os remetem para o campo das paraliteraturas.
No caso deste romance, a principal qualidade reside em algo que na opinião de alguns é um dos marcos identificativos da ficção científica, embora eu discorde: o maravilhamento, mais conhecido pela expressão inglesa sense of wonder.
John Carter ainda o tem com alguma abundância, apesar de toda a literatura acumulada no mais de um século que se passou desde que foi publicado, apesar de todos os filmes e bandas desenhadas e jogos de computador, e por aí fora. Isso é realmente uma qualidade incontestável deste livro, e deriva da escala em que Burroughs constrói a ambientação. É um mundo inteiro que torna razoavelmente palpável, fortemente baseado na mitologia greco-romana que atribui a Marte um caráter guerreiro, e na ideia que Percival Lowell divulgou sobre Marte, a de um mundo seco, mas vivo, no qual longos canais funcionam como rede de recuperação e aproveitamento da escassa água nele existente. Não é por acaso que quando se fala deste livro Barsoom vem sempre à baila: é sinal de que Barsoom é o mais importante protagonista da história. Barsoom?, perguntarão. Sim, Barsoom. Trata-se do nome marciano de Marte.
E é basicamente Barsoom o que transforma este livro num clássico. É Barsoom (a par do Marte d'A Guerra dos Mundos, que no entanto está muito escassamente descrito no romance de Wells) que influencia autores posteriores a escrever as suas próprias versões do romance planetário ambientado em mundos quase sem água, de Ray Bradbury, que se mantém fiel ao Marte lowelliano, a Frank Herbert, que transfere um ambiente semelhante para o seu próprio planeta a que chama Duna, só para mencionar dois nomes grandes.
Porque de resto, é muito o que neste livro é fraco, mau, feito de chavões e pouco imaginativo. O enredo, por exemplo, é aquele típico enredo de "homem branco chega ao país dos selvagens, cujo ambiente, modo de vida e tradições ignora por completo mas apesar disso se torna naturalmente seu líder e parte para a guerra para corrigir todas as injustiças e ficar com a gaja boa", tão comum nas ficções simplistas e supremacistas dos últimos 200 anos, pelo menos. O protagonista é o não menos típico herói ultraviril que derrete qualquer fêmea que se aproxime dele mais que meia dúzia de quilómetros, a menos que seja velha, feia e má porque essas não interessam a ninguém, e avança intrepidamente para qualquer perigo e desafio, saindo-se invariavelmente bem de qualquer empreitada, mesmo que por vezes pareça meter-se em assados intransponíveis. A escrita é no máximo básica, meia-bola e força, completamente nua de subtilezas. E por aí fora.
Ou seja: o interesse deste romance reside sobretudo na sua relevância histórica para o desenvolvimento de um género, seja na literatura, seja noutros meios de contar histórias. John Carter continua bem presente, cem anos depois, e de uma forma ou de outra, em muitos livros, sim, mas sobretudo em muitas bandas desenhadas e em muitos filmes e séries de TV. Deverá por isso ser lido por quem quiser compreender de onde vêm certas características das artes narrativas, sobretudo as americanas ao longo do século XX. Não virão inteiramente daqui, certamente, mas algumas têm aqui as suas verdadeiras origens e, para as que não as têm, este romance constitui um bom exemplo do que se fazia na época, pois este tipo de história extravasava bastante a ficção científica, surgindo em pleno em histórias de aventuras dos géneros mais díspares.
O que ficou escrito acima não chegou para que eu gostasse desta leitura, mas bastou para que a achasse interessante. Já é qualquer coisa.
Este livro foi comprado.
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