terça-feira, 1 de outubro de 2019

Mary Webb: O Fantasma do Senhor Tallent

Uma coisa liga este conto de Mary Webb a A Voz de Deus, de Winifred Holtby: uma muito corrosiva ironia. E também há uma coisa a ligar O Fantasma do Senhor Tallent (bibliografia) a A Porta Aberta, de Saki (conto que também não é alheio à ironia, diga-se de passagem): uma certa forma de brincar com os chavões das histórias de fantasmas para as subverter de modo realista.

Aqui, o alvo da ironia são aqueles escritores profundamente medíocres que se julgam o pináculo da criação literária e por isso são patologicamente incapazes de aceitar críticas, independentemente de serem brandas, duras ou assim-assim. Conhecem algum exemplar da patética espécie? Pois. O da Mary Webb chama-se Tallent, apelido deliciosamente gozão porque se há coisa de que o homem não tem nem o menor vestígio é talento, o que parece ser comum na raça. Mas não é ele o protagonista: o protagonista é um desgraçado que tem a má ideia de, num momento de ócio desavisado, lhe prestar atenção.

Sem saber bem como, o desgraçado do homem vê-se não só condenado a ter de aturar a nulidade, que insiste em ler-lhe uma das suas obras, mas erigido à condição de seu executor testamentário, o que, como vem a saber não muito mais tarde, tem o potencial para lhe arranjar um sem-fim de chatices porque o Tallent, que até tem o seu dinheiro, deserda toda a família a fim de usar o dinheiro para publicar livros que de outra forma ninguém quereria publicar. Mas que se lixe, pensa, o caso não é grave: o homem não irá propriamente finar-se assim de um dia para o outro e até que o faça tudo pode resolver-se a contento de todos.

Pois. Só que se fina mesmo, e o testamento, acompanhado da impublicável obra, vai mesmo parar às mãos do protagonista. O qual até toma algumas providências no sentido de vir a tentar publicar alguma coisa, o que só consegue fazer com que o Tallent se transforme em anedota (coisa que também é costume acontecer à raça), enquanto enfrenta a furiosa contestação dos familiares deserdados. E os livros ficam por publicar. E depois começam a acontecer coisas fantasmagóricas. Ou talvez não tão fantasmagóricas assim.

Não vou revelar o final da história, ainda que ela já fique disponível a bons entendedores através de várias meias palavras. Digo apenas que este conto é francamente divertido, e mais divertido se torna quando ao longo da leitura se imagina o Tallent com a cara de algum medíocre armado aos cágados que se conheça. Não será um grande conto, mas a ironia é deliciosa.

Contos anteriores deste livro:

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