quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Ray Bradbury: O Esqueleto

E aqui estamos perante um dos grandes contos de Ray Bradbury, na sua vertente mais macabra e, neste caso, de verdadeiro horror. Um daqueles contos que se lê e não se esquece. O Esqueleto (bibliografia) é a história de um homem em guerra aberta com uma parte de si próprio: o esqueleto, precisamente.

É uma daquelas histórias que vão evoluindo lentamente, desde que um homem com alguns problemas recebe a ideia de que estes se devem a uma incompatibilidade fundamental entre ele e o esqueleto que o sustenta, passando a encará-lo com corpo estranho a si e, mais, como entidade que o combate e que é preciso combater para que não o mate, até ao desenlace que, mesmo sendo inevitável desde o início, não deixa ainda assim de chocar. Refiro-me ao desenlace para o protagonista, não o momento, pouco antes, em que se revela a verdadeira motivação do médico que o trata: aí existe surpresa genuína, mas o choque do final não é maior por isso.

Quando li pela primeira vez este conto, nos já algo longínquos tempos da adolescência, não reparei nisto, mas agora na releitura não pude evitar o paralelismo entre o que se vai passando nesta história e a progressão das variedades mais graves das doenças autoimunes. Não posso saber até que ponto Bradbury se inspirou nelas para escrever o seu conto, se bem que se me pedissem uma suposição diria que não se inspirou em nada. Mas o facto é que o paralelismo existe. O protagonista desta história vê no esqueleto uma parte de si que o quer destruir, ideia — ou melhor: obsessão — que é reforçada com as dores que o esqueleto "lhe causa" sempre que pensa fazer algo que frustre os seus planos daninhos. E nas doenças autoimunes é precisamente isso que acontece: partes do corpo encaram erroneamente outras partes do corpo como objetos estranhos e atacam-nas, frequentemente de forma dolorosa e, em casos extremos, potencialmente fatal.

Com tal paralelismo em mente, o impacto da história é ainda maior. É frequente que nas releituras aquele abalo emocional que as histórias têm quando são novas e inesperadas se perca, se não por completo pelo menos em parte. Mas com esta história aconteceu-me o oposto. Um dos vários motivos por que este conto é excelente.

Contos anteriores deste livro:

6 comentários:

  1. Jorge, estou também a (re)ler este livro, do qual lembrava poucas coisas. Este conto me evoca os versos de João Cabral de Melo Neto, em "Uma Faca Só Lâmina": "qual uma faca íntima / ou faca de uso interno, / habitando num corpo / como o próprio esqueleto / de um homem que o tivesse, / e sempre, doloroso, / de homem que se ferisse / contra seus próprios ossos."

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    1. Curioso. Terá havido inspiração? Este conto já é bastante antigo -- 1945...

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  2. Esta história interessa-me. Vou à procura. Qual é o título em inglês, The Skeleton? Lembra-me uma coisa que vi, se calhar no Twilight Zone, sobre um homem que arranjou um exoesqueleto para se curar de uma doença e esse exoesqueleto acabou por se virar contra ele.

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    1. Não, é só "Skeleton".

      (de uma forma geral, quando tens um link a dizer "bibliografia", encontras esses dados seguindo esse link, no Bibliowiki)

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  3. Obrigada. Agora que investiguei, também existe esta compilação no original, The October Country.

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    1. Isso.

      E também existe uma edição portuguesa, mas já bastante antiga e amputada de vários contos.

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