E aqui estamos perante um dos grandes contos de Ray Bradbury, na sua vertente mais macabra e, neste caso, de verdadeiro horror. Um daqueles contos que se lê e não se esquece. O Esqueleto (bibliografia) é a história de um homem em guerra aberta com uma parte de si próprio: o esqueleto, precisamente.
É uma daquelas histórias que vão evoluindo lentamente, desde que um homem com alguns problemas recebe a ideia de que estes se devem a uma incompatibilidade fundamental entre ele e o esqueleto que o sustenta, passando a encará-lo com corpo estranho a si e, mais, como entidade que o combate e que é preciso combater para que não o mate, até ao desenlace que, mesmo sendo inevitável desde o início, não deixa ainda assim de chocar. Refiro-me ao desenlace para o protagonista, não o momento, pouco antes, em que se revela a verdadeira motivação do médico que o trata: aí existe surpresa genuína, mas o choque do final não é maior por isso.
Quando li pela primeira vez este conto, nos já algo longínquos tempos da adolescência, não reparei nisto, mas agora na releitura não pude evitar o paralelismo entre o que se vai passando nesta história e a progressão das variedades mais graves das doenças autoimunes. Não posso saber até que ponto Bradbury se inspirou nelas para escrever o seu conto, se bem que se me pedissem uma suposição diria que não se inspirou em nada. Mas o facto é que o paralelismo existe. O protagonista desta história vê no esqueleto uma parte de si que o quer destruir, ideia — ou melhor: obsessão — que é reforçada com as dores que o esqueleto "lhe causa" sempre que pensa fazer algo que frustre os seus planos daninhos. E nas doenças autoimunes é precisamente isso que acontece: partes do corpo encaram erroneamente outras partes do corpo como objetos estranhos e atacam-nas, frequentemente de forma dolorosa e, em casos extremos, potencialmente fatal.
Com tal paralelismo em mente, o impacto da história é ainda maior. É frequente que nas releituras aquele abalo emocional que as histórias têm quando são novas e inesperadas se perca, se não por completo pelo menos em parte. Mas com esta história aconteceu-me o oposto. Um dos vários motivos por que este conto é excelente.
Contos anteriores deste livro:
Jorge, estou também a (re)ler este livro, do qual lembrava poucas coisas. Este conto me evoca os versos de João Cabral de Melo Neto, em "Uma Faca Só Lâmina": "qual uma faca íntima / ou faca de uso interno, / habitando num corpo / como o próprio esqueleto / de um homem que o tivesse, / e sempre, doloroso, / de homem que se ferisse / contra seus próprios ossos."
ResponderEliminarCurioso. Terá havido inspiração? Este conto já é bastante antigo -- 1945...
EliminarEsta história interessa-me. Vou à procura. Qual é o título em inglês, The Skeleton? Lembra-me uma coisa que vi, se calhar no Twilight Zone, sobre um homem que arranjou um exoesqueleto para se curar de uma doença e esse exoesqueleto acabou por se virar contra ele.
ResponderEliminarNão, é só "Skeleton".
Eliminar(de uma forma geral, quando tens um link a dizer "bibliografia", encontras esses dados seguindo esse link, no Bibliowiki)
Obrigada. Agora que investiguei, também existe esta compilação no original, The October Country.
ResponderEliminarIsso.
EliminarE também existe uma edição portuguesa, mas já bastante antiga e amputada de vários contos.