Existe uma arte delicada em retirar o tapete de baixo do leitor no fim de uma história (ou no meio; também pode ser no meio, ou até várias vezes ao longo do enredo), fazendo-o reavaliar tudo o que ficou para trás. Quando essa arte é aplicada como deve ser e tudo o resto de que se faz a literatura está no lugar que lhe é próprio, o resultado é uma obra de primera água. Mas quando é mal aplicada o resultado nunca consegue ultrapassar a mediania, sendo as mais das vezes bem pior do que isso.
Embora a execução da arte seja delicada e complicada, é fácil descrevê-la: a reavaliação tem de ter como resultado que tudo o que ficou para trás continua a fazer sentido à luz da nova informação. Ou seja, para dar um exemplo: se uma personagem tem planos e desses planos consta vir a ser perseguida pelas autoridades, os seus pensamentos revelados ao leitor pelo narrador omnisciente não podem manifestar surpresa quando se vê perseguida. Pelo menos surpresa por se ver perseguida. Se o faz na tentativa de levar o leitor a julgar que a perseguição é um problema e não estava nos planos, quando surge a informação de que não é e estava, a história torna-se incoerente e batoteira. A arte falha.
E é precisamente esse o principal problema com este Fuga (bibliografia), de Gabriel Cantareira, um conto de ação sobre uma jovem que se põe em fuga depois de roubar informações, segundo as quais a elite (de que faz parte) se prepara para apertar mais ainda a malha que cerca a consciência dos cidadãos, controlando-a e, assim, reforçando o seu poder, não só político como económico. Ou talvez seja melhor dizer que é um dos principais problemas, porque infelizmente não é o único: o conto também sofre com longos infodumps e com um português que está longe do ideal. E segue um rumo que me parece completamente equivocado: focar-se na ação da fuga e perseguição, as quais seguem um enredo muitíssimo básico, já visto centenas de vezes em centenas de fitas de Hollywood, deixando para infodump tudo o que tem de interessante.
E é pena, porque eu gosto bastante do seu substrato político e de quão relevante ele é nos tempos que correm. Mas a execução deixa tanto a desejar que não posso deixar de considerar este conto bastante fraco, o pior que esta antologia apresentou até aqui.
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