sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Lido: O Uso da Força

A literatura é sempre sobretudo uma questão de interpretação, mesmo quando tenta não o ser. Há sempre qualquer coisa subjacente, a espreitar dos subterrâneos do impulso criativo, à espera de ser descortinada por quem acaba por ler o produto final. Mas descortinar essas coisas nem sempre é simples e, não raro, a tentativa traz consigo o risco de ver aquilo que não existe, em exageros de exegese que até os autores desconcertam.

Em 1938, William Carlos Williams publicou este conto, O Uso da Força. É um conto realista e muito possivelmente autobiográfico, sobre um médico que é chamado para ver e tentar tratar uma miúda doente. Mas esta é teimosíssima, recusa-se a ser vista, e o médico, que vai ficando cada vez mais frustrado e furioso, acaba por recorrer à força para tratar a paciente. O enredo é esse e está bem delineado numa prosa segura e direta, sem divagações ou devaneios. Passa-se a história nos EUA e em tempo de paz. É um bom conto, mas não uma história que me desperte grande interesse.

E no entanto foi escolhido para integrar um número especial de uma revista dedicada a contos de guerra.

É possível que quem o fez tenha interpretado o conto como uma parábola sobre a justificabilidade de recorrer à força militar em determinadas circunstâncias, tenha achado que sob a capa de pacatez campestre americana Williams estava realmente a falar da violência que se ia somando na Europa, às portas da eclosão da II Guerra Mundial, justificando-a pelo menos em certas circunstâncias. É uma interpretação possível mas... Honestamente? Não me parece nada. Nem toda a ficção escrita perto da Segunda Grande Guerra teve a ver com ela, direta ou indiretamente, e os EUA, cuja psique coletiva é tradicionalmente insular, ainda estavam nessa altura na sua fase isolacionista, o que só reforça esse alheamento.

Também é possível que tenha decidido arranjar exemplos literários de outras guerras, fugindo ao óbvio. Neste caso, uma guerra de vontades entre médico e doente. OK, se assim foi nada tenho a opor. Mas a verdade é que ler esta história depois das três anteriores faz com que ela pareça bastante deslocada. A ver vamos se com as próximas esse deslocamento se reduz ou reforça.

Contos anteriores desta publicação:

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