Ray Bradbury é com demasiada frequência apresentado como escritor de ficção científica, o que tem como consequência muita gente pensar que ele só escreveu FC. Mas embora eu compreenda a necessidade que as pessoas ligadas ao género sentem de reivindicar para si os escritores que nunca os renegaram (ao contrário de outros que, apesar de por vezes escreverem ficção científica, cedem ao preconceito reinante entre os pseudo bem-pensantes, quando não o alimentam diretamente), parece-me que isso tem o efeito perverso de gerar ou pelo menos alimentar uma ideia errónea não só sobre a obra do autor (antes desta ser lida), como sobre o próprio género (quando as obras são lidas).
Acho mais correto dizer-se que Bradbury foi um autor que escreveu FC, alguma da qual magnífica, mas também escreveu outras coisas. Escreveu horror, ou a sua peculiar versão dulcificada de horror (que se calhar não é propriamente horror, mas fantasia de pendor macabro), escreveu um fantástico mais respeitador da definição de Todorov, escreveu histórias inteiramente mainstream, escreveu policial, e por aí fora. E escreveu muita ficção híbrida em maior ou menor grau, que não se encaixa univocamente em nenhum género (ou se encaixa em vários).
O Dragão (bibliografia) é um desses contos híbridos, embora descaia principalmente para a fantasia. O cenário, pelo menos e à primeira vista, é-o por inteiro: cavaleiros medievais procuram num pântano um dragão que devora viajantes. Encontram-no e atacam-no, quixotescamente, pagando por isso com a vida. E depois o conto muda de perspetiva e o leitor percebe que os acontecimentos descritos são bem mais estranhos do que pareciam à primeira vista. Quem conhece as histórias de ficção científica sobre roturas no espaçotempo, gerando descontinuidades espaciais, temporais, ou ambas, razoavelmente populares em meados do século XX, talvez reconheça nesta história um parentesco claro, mas a verdade é que a FC, aqui, é só questão de interpretação. Pode-se dispensá-la sem problemas, encarando o conto como uma simples história fantástica. Boa, sim, mas não das mais impactantes, e esta palavra, impactantes, foi escolhida com uma certa ironia. Quem a ler perceberá.
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