Aconteceu por puro acaso, mas calhou lindamente. Falar deste conto de Ray Bradbury imediatamente na sequência desta história umbiguista de Inês Pedrosa é ideal para exemplificar o motivo por que a ficção científica, quando boa, consegue ser muitíssimo superior ao mainstream banal. Porque os dois contos têm em comum o facto de se centrarem no domínio dos sentimentos humanos e das relações homem-mulher. Só que enquanto uma dessas histórias gira em volta do umbigo de autora e protagonistas, a outra olha para fora, para as grandes questões do que significa ser-se humano neste vastíssimo universo em que vivemos.
Em A Janela Cor de Morango (bibliografia) estamos em Marte, no típico Marte bradburiano, habitável mas desértico, e encontramos como protagonistas um casal de colonos. À velha moda patriarcal, típica da década de 1950, ele trabalha, ela está em casa (e esta é a única faceta em que a história de Inês Pedrosa é francamente melhor... em parte por ser mais recente, sim, mas não só) e sofre de solidão e com saudades da Terra. Esta situação é usada por Bradbury para fazer uma reflexão, que não perdeu nada da sua pertinência com os mais 60 anos que decorreram desde a sua publicação, sobre o motivo por que a exploração de novas fronteiras está no âmago da condição humana. E sobre a aparentemente insanável contradição que existe entre isso e a necessidade igualmente forte de manter alguma ligação ao passado, de conservar raízes.
Diz-nos Bradbury que o segredo reside em levarmos as raízes connosco sempre que partirmos para outras paragens. Talvez assim seja, talvez não. No fundo, em termos literários pouco importa. O importante é Bradbury dizer-nos alguma coisa com o seu conto, além de o escrever tão bem como era seu hábito. Já a nossa amiga portuguesa fica-se por escrever bem.
E isto, longe de ser incomum, é habitual. A FC, a boa FC, a FC que não se limita ao escapismo, fala, pensa, discute, olha para fora. Já o mainstream contemporâneo limita-se com demasiada frequência a orbitar umbigos e está-se borrifando para toda a infindável riqueza que existe no exterior desses umbigos. É estéril. E, sendo estéril, é descartável. Por mim, descarto-o com todo o gosto.
Contos anteriores deste livro:
Sem comentários:
Enviar um comentário
Por motivos de spam persistente, todos os comentários neste blogue são moderados. Comentários legítimos passam, mas pode demorar algum tempo. Como sempre acontece, paga a maioria por uma minoria de abusadores. Parece ser assim que o mundo funciona, infelizmente.