quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Lido: O Viajante

Entre os leitores de ficção científica há um grupo que só está contente com a última ideia inovadora, a ponta da ponta, e elege a novidade como medida absoluta de qualidade. Não pertenço nem nunca pertenci a esse grupo: gosto de uma boa história, gosto de coisas bem escritas e, embora as ideias desafiadoras possam contribuir para a criação (e desfrute) de uma boa história, tenho vastos motivos para crer que é perfeitamente possível criar histórias boas e bem escritas com base em ideias batidas. Ou seja, sim, as ideias novas e desafiadoras podem ser um fator para a criação de boas histórias, se quem as cria as souber usar, e por isso podem ser uma medida de qualidade. Mas não são a única, e muito menos são absoluta.

É por isso que quando deparo com uma história cheia de clichés vou à procura de outras facetas da criação ficcional antes de decidir se a história é boa ou não. Os clichés são usados de forma cliché, empilhando ideias batidas em cima de ideias batidas, ou com alguma novidade? A língua é bem ou maltratada? As personagens têm substância ou mal chegam a ser fantasmas de gente (ou de não-gente)? O ritmo narrativo é adequado ao tom da história ou choca com ele? E por aí fora. E cada resposta a cada uma destas questões contribui para a avaliação final.

O conto O Viajante, de Rafael Marx, é uma dessas histórias cheias de clichés. Num futuro longínquo, com a humanidade tão espalhada pelas estrelas (cliché) que o planeta original da espécie humana está esquecido (cliché, e particularmente tonto), é encontrado no espaço um artefato aparentemente alienígena (cliché), o qual vai ser investigado pelos cientistas do tempo que, curiosamente, parecem estar dotados de pouco mais capacidades tecnocientíficas do que os de hoje (cliché). E o que esse artefato é vai revolucionar a compreensão que a sociedade tem sobre si própria e o seu passado (cliché).

Com tantos clichés, o conto teria de estar muito bem escrito, ou pelo menos de os usar com imaginação e novidade, para poder ser bom. Infelizmente não é o que acontece. O mistério que Marx tenta prolongar até um final que se esforça para tornar surpreendente desaparece antes do conto chegar a meio quando o leitor se lembra de enredos semelhantes (incluindo até um dos filmes do Star Trek) e os liga ao título do conto. E a escrita, embora seja razoavelmente correta, está longe de ser isenta de falhas (inclusive algumas caricatas, em frases como "foi quando se encontrou, em aparente local de destaque, um objeto circular em local de destaque") e muito, muito longe de ser realmente boa. Tudo somado, o resultado é um conto bastante fraco, tanto enquanto FC, quanto no que toca às suas qualidades literárias.

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