quarta-feira, 24 de julho de 2019

Nancy Kress: O Preço das Laranjas

Há por aí quem julgue que nos últimos anos os esquerdalhos andam a estragar a ficção científica com a mania de enfiar nela personagens que não sejam homens brancos hetero e wasp. Que isso de variedade é parte de alguma conspiração comuno-gay internacional, provavelmente financiada por judeus (e não são sempre os judeus que financiam tudo?). Estas brilhantes ideias tiveram recentemente um violento impacto na FC internacional (mas especialmente na americana), ao ponto de fazerem abanar uma das mais antigas instituições do género: os Prémios Hugo.

Como tantas outras opiniões vindas daquelas bandas, esta também é uma opinião movida sobretudo a uma tremenda ignorância. Porque só a ignorância explica o completo desconhecimento de que todas as coisas que apontam como irritantes modernices desta era do politicamente correto já existem na ficção científica há décadas. E a prova está, por exemplo, em O Preço das Laranjas (bibliografia), noveleta de Nancy Cress publicada originalmente em 1989. Há trinta anos, portanto.

Trata-se de uma história de viagem do tempo. Um avô preocupado com a neta está convencido de que os problemas dela se devem aos tempos modernos e às múltiplas carências que eles revelam no campo das relações interpessoais (sim, porque como toda a gente sabe antigamente é que as pessoas tinham respeito umas pelas outras... ahem...). Ora acontece que este avô tem um segredo. Por qualquer motivo que ele não compreende (mas isso não o preocupa por aí além), há um portal no fundo do seu armário que o leva ao passado, às vésperas da II Guerra Mundial, e o facto de o portal se encontrar no armário tem mais que uns pozinhos de ironia. Leva-o a 1937, mais propriamente. E ele concebe um plano: se arranjasse forma de trazer um homem de 1937 para o presente com certeza que ele seria o ideal para arrancar a neta ao seu permanente mau humor raiando o desespero. Não podia ser um homem qualquer, claro, mas certamente haverá alguém adequado.

E se bem o planeia, melhor o põe em prática. Bem, não é que seja fácil, mas acaba por conseguir arrancar um rapaz promissor ao tempo que lhe é próprio. Não voluntariamente, atenção, o que naturalmente vai provocar ao jovem um choque e peras. Mas o velhote escolhera mesmo bem. Não que o seu plano tenha resultado, mas a verdade é que o jovem recupera depressa do choque e deixa-se fascinar pelo mundo moderno, para ele futuro, e até aceita passar algum tempo com a neta do velhote.

Mas depois, claro, quer voltar para o seu tempo e, a contragosto, o velhote lá o deixa ir, julgando que não tinha conseguido alcançar nada com a aventura. Mas tinha. O jovem vive a sua vida no seu tempo, batendo-se pelo progresso. E tem descendência. E uma das suas descendentes, lésbica, entra numa relação com a neta do protagonista da história. Fazendo-a finalmente feliz. Fim.

E um conto com trinta anos tem tudo aquilo que certa malta odeia no "politicamente correto de hoje em dia". Não será por isso que é bom, mas é bom. Temos pena.

(Não, não temos.)

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