quinta-feira, 11 de julho de 2019

Steven Utley: Minha Mulher

Continuando o que fui dizendo quando falei do conto anterior desta revista, outra qualidade da ficção científica normalmente ignorada por quem a desconhece é falar de assuntos polémicos muito antes de eles subirem a primeiro plano nas preocupações gerais da sociedade. Os exemplos são demasiado numerosos para enumerar, mas neste conto de Steven Utley podem encontrar-se logo dois: a violência conjugal e que direitos há sobre cadáveres passíveis de serem ressuscitados e quem tem tais direitos.

O primeiro dificilmente podia estar mais na ordem do dia, não só em Portugal como no mundo inteiro, de tal forma que nem vale a pena explicar porquê. Já o segundo, embora já seja relevante para os dias que correm, terá uma premência maior quando, num futuro mais ou menos próximo, seja possível reanimar pessoas que para todos os efeitos estão mortas, não só aquelas cujos corpos foram preservados criogenicamente, mas também as outras, ou pelo menos algumas das outras. Note-se que não sigo se mas quando. Não é por acaso, embora essa discussão não caiba aqui.

Aqui cabe falar-se do conto. Não é por acaso que Minha Mulher (bibliografia) tem este título, uma daquelas raras ocasiões em que a tradução para a língua portuguesa ainda o torna mais adequado ao texto do que o original em inglês. O protagonista do conto é um homem, riquíssimo, inconformado com a morte da mulher, e que por isso contrata cientistas de ponta para a ressuscitarem enquanto vai convivendo com o seu fantasma em realidade virtual. O processo é novo, não testado, de êxito incerto e ilegal, mas ele não quer saber: quer ter a mulher de volta e pronto. E não admite recusas nem hesitações. As coisas ou são como ele quer ou alguém vai ter problemas.

O que move a história é a progressiva descoberta da natureza do homem, da natureza do processo (que nunca chega a ficar inteiramente claro, mas não é preciso; basta que fique clara a sua incerteza) e do motivo da morte da mulher. É um conto concebido para a surpresa, e é provável que mesmo tendo tido cuidado para não o revelar demasiado já tenha aqui deixado demasiadas pistas. Nesse aspeto, está muito bem concebido. Na relevância dos temas que aborda, e até na forma como os aborda, também. Onde para mim falha um pouco é no texto propriamente dito. É por isso que não o acho um conto muito bom. Mas é bom.

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