domingo, 7 de julho de 2019

Onésimo Teotónio Almeida: Jean-Charles, Amor de Calções

Eu percebo. A tentação é forte. Sendo o escritor um escritor, e antes disso um leitor, é simplesmente natural que escreva sobretudo com a sua própria condição em mente. Daí a abundância de textos literários a enaltecer os livros, um dos clichés mais queridos de certa franja de leitores (mas que não deixa por isso de ser cliché, tão banal como qualquer outro). E daí a existência de textos como este.

Porque este conto de Onésimo Teotónio Almeida é um conto de escritor absolutamente consciente de o ser, e ainda por cima escritor imbuído daquelas ideias típicas do mainstream sobre a importância relativa da caracterização de personagens, o enredo e o trabalho da língua. Apesar de pôr o contrário na pena de um dos seus narradores.

Estes são dois, que o conto é epistolar "à moderna", sendo construído não por cartas mas por mensagens de email, por vezes com os respetivos anexos. Trocadas entre um orientador de tese e o seu orientando, um holandês estudante de literatura portuguesa, centram-se no que explica o título de Jean-Charles, Amor de Calções: o filho do orientador e as suas tiradas de uma ironia corrosiva, que pelos vistos são sua característica desde a mais tenra infância. O orientando tenta convencê-lo de que tal personagem vale pelo menos um conto e insta-o a escrevê-lo, coisa a que o orientador resiste enquanto envia ao outro sucessivas mensagens carregadas de ditos do jovem "Jean-Charles" (com aspas; ele não se chama realmente Jean-Charles) e cheias de recomendações para se deixar de ilusões sobre a possibilidade de uma mera personalidade dar um conto e avançar mas é com a tese, pois o tempo passa e ela não se faz sozinha.

Ironicamente, é isso mesmo o que Onésimo Teotónio Almeida faz com a mera personalidade: um conto. Talvez queira com isso dizer que as fórmulas existem para serem violadas, talvez queira mostrar que tudo depende da abordagem. Quer certamente fazer um comentário muito consciente à teoria literária. E fá-lo com plena eficácia. A questão que fica é: e isso interessa a alguém que não seja também escritor e/ou estudioso de literatura?

Desconfio que nem por isso, francamente. Eu não desgostei; percebi a ideia, acho, até porque também escrevo de vez em quando, e as tiradas do puto são frequentemente bastante engraçadas. Não engraçadas de gargalhada, talvez (ou talvez não; eu soltei uma e não me custa a crer que haja quem solte mais), mas de sorriso com certeza. Mas desconfio que para muitos leitores, quiçá a maioria, isso não chega. Nem a mim chegou para realmente gostar, pois existe nestes contos de escritor-para-escritores um isolamento em redoma feita de palavras que me desagrada com insistência. Como se o mundo fosse irrelevante e só a literatura importasse. De modo que este conto sai da minha leitura com carimbo de mediano. Escapa. Não está mal.

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