É curioso como Stephen King consegue em vários dos seus livros escrever histórias que podem ser encaradas como horror sobrenatural ou ficção científica dependendo da maneira como se olha para elas. Não é o único a fazê-lo, evidentemente, pois as interseções entre o horror e a FC são abundantes e antigas, não só na literatura mas também noutras formas de arte. Mas, ao contrário de muitos outros autores comummente associados ao horror, cujas sobrenaturalidades não deixam lugar a dúvidas, King fá-lo de forma quase tão consistente como Lovecraft.
E fá-lo neste Buick 8, Um Carro Perverso (bibliografia), por exemplo. O título português, de resto, é bastante mau. Nada há no título original de From a Buick 8 que permita deduzir perversidade, e a que existe no texto é mais impressão subjetiva de algumas das personagens do que coisa minimamente objetiva. O título original, que significa simplesmente "De um Buick 8", deixa todas as interpretações em aberto, e isso não acontece por acaso (ainda que o motivo principal seja a ligação a Bob Dylan), pelo que a tentativa de forçar uma interpretação através do título em português não só é francamente má como desrespeita a vontade do autor. E não, não estou a bater na tradutora: este título tem toda a cara de opção editorial.
O que o Buick 8 é com toda a certeza é um portal para outro mundo. Ou melhor, não propriamente um portal para algures, mas um que conecta bidirecionalmente a Terra a outro mundo. Que mundo? Não se sabe. Não fica claro. Pode ser um mundo alienígena, situado algures neste vasto universo, pode ser um mundo paralelo ao nosso, situado noutro universo, pode ser um qualquer mundo infernal, demoníaco, o texto do romance dá azo a todas estas interpretações. As duas primeiras são de ficção científica, a terceira não é.
Essa indefinição não é casual. É precisamente esse o tema do romance: o que se desconhece e, mais do que isso, o que não se pode conhecer. Nesse sentido, este livro aproxima-se de vários livros de Lem, de Solaris a Fiasco, e também de um outro romance que li há muito pouco tempo, Blindsight, de Peter Watts, embora a abordagem seja aqui bastante diferente. Enquanto o incognoscível de Lem e Watts se encontra no espaço, o de King aparece um belo dia numa bomba de gasolina da Pensilvânia sob a forma de um carro que, se não fosse o seu condutor ter desaparecido, deixando-o abandonado, e o carro ter uma ou outra característica estranha, poderia considerar-se banalíssimo.
Mas há as características estranhas e o desaparecimento do condutor, portanto o carro é apreendido pela polícia estadual, metido num barracão... e começam a acontecer coisas estranhas com ele. Coisas ainda mais estranhas que as primeiras. Espetáculos de luzes, aparecimento de bizarras e repugnantes criaturas que rapidamente se decompõem emitindo odores nauseabundos... e desaparecimentos vários de coisas e criaturas que se encontravam à sua volta. Incluindo um polícia.
A história é-nos contada porque décadas depois do carro ter aparecido o filho de um polícia morto num acidente e desde o início profundamente mergulhado na investigação possível à natureza daquela coisa começa a fazer biscates na esquadra em busca de informações sobre o pai. E os colegas do pai vão-no pondo ao corrente do que sabem, das coisas que aconteceram com o Buick, das coisas que o pai fez e das coisas que os outros fizeram. É uma história longa, contada a várias vozes, e em grande medida inconclusiva porque apesar de se terem passado décadas desde o abandono (se é que o foi de facto) do carro na bomba de gasolina, ninguém conseguiu penetrar muito no mistério do Buick.
Perto do fim, o rapaz quase é apanhado pelo carro-portal, resistindo apenas porque um dos colegas do pai o agarra, amarrado a uma corda que outros colegas seguram, fornecendo-nos um vislumbre do lugar que existe do outro lado. Este é tão esquemático e limitado que também está aberto a interpretações, ou seja, traz em si muito pouca informação — uma espécie de prado numa espécie de colina, cores estranhas e pouco mais. De novo, não é por acaso. Mas para mim este vislumbre sustenta a aproximação do livro à ficção científica: o lugar que se vislumbra tem todas as características de um sítio real no mundo natural.
Há quem deteste esta indefinição, este deixar as coisas em aberto e sujeitas a interpretações; eu, aqui, gosto bastante, uma vez que ela contribui em grande medida para a eficácia do livro. Numa história sobre o incognoscível pouco sentido faria definir aquilo que só pode ficar indefinido, compreender o que não se pode compreender. Este livro é bastante bom. A narração é pausada mas apesar disso não tem a palha que se encontra em alguns dos outros livros de Stephen King, antes segue o modo naturalmente sinuoso do contar oral de histórias, em especial quando estas são contadas por vários contadores, como acontece aqui. E a informação que acaba por ser fornecida, sendo insuficiente para o leitor ficar com certezas, é no entanto mais que suficiente para ter suspeitas e construir opiniões. Ou seja: King teceu o seu romance bastante bem. Não perfeitamente, até porque a perfeição é tão inatingível como o Buick 8 é incognoscível, mas sim, bastante bem.
Este livro veio da biblioteca dos meus pais.
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