Há muitos contos populares cuja moral principal se pode resumir na velhíssima máxima "o crime não compensa". E este A Bicha de Sete Cabeças é um deles.
Mas é mais do que isso. Recolhido por Adolfo Coelho em Ourilhe, a tal terreola com um peso absolutamente desproporcionado nesta recolha, também é um conto que desmente de forma categórica a velha ficção nacional sobre os portugueses não serem racistas. Quem juntar as duas coisas percebe imediatamente: há aqui um preto, e é o preto o criminoso. Claro.
O enredo anda em volta de um caçador que caça a tal bicha de sete cabeças, sem saber que o rei instituíra um prémio pela morte de tal monstro: a mão da filha em casamento, como de costume. O tal preto, malandro e vigarista, aproveita-se da ignorância do heroico caçador, apropria-se das cabeças da bicha, leva-as ao rei, afirmando ter sido ele o bravo a matar o monstro. E claro que tudo acaba em bem, com o preto impedido de casar com a princesa e o branco bonzinho recompensado.
Esta é das tais histórias que, a reboque de uma moral positiva (mas falsa, infelizmente; demasiadas vezes o crime compensa mesmo), inculca em quem a lê e ouve uma série de valores francamente negativos, quando não são mesmo repugnantes. E também é uma história com uma curiosidade: o facto de se referir à bicha assim, no feminino. É que eu sempre ouvi falar em bicho de sete cabeças, masculino, uma expressão que se utiliza como sinónimo de coisa muito complicada. E isto desde bem antes de o brasileirismo bicha se generalizar para designar os homossexuais masculinos. Regionalismos, talvez? Não sei.
Contos anteriores deste livro:
Eu sempre ouvi falar de bicha de sete cabeças (no sentido de hidra, mesmo). Sou de Lisboa.
ResponderEliminarA sério? Nunca ouviste frases do tipo "oh, pá, tem lá calma que isso não é nenhum bicho de sete cabeças", no sentido de não ser nada de particularmente complicado? Era bicha?
EliminarOuvi as duas coisas:
ResponderEliminarbicho de sete cabeças = problema
bicha de sete cabeças = hidra
Uma bicha é um bicho semelhante à cobra. Aliás, em Lisboa chama-se bicha a muita coisa. Fiquei perplexa quando comecei a conhecer pessoas de outros sítios que achavam que "bicha" era uma palavra feia. Muito antes das telenovelas brasileiras.
Aqui o insulto sempre foi outro. Muito, mas muito mais feio, quer no masculino quer no feminino. Bicha é a do autocarro.
Pode ser um regionalismo do meu bairro onde até temos um Beco da Bicha. ;)
Engraçado. Eu nunca ouvi bicha de sete cabeças. Por aqui bicha é a fila, sim, e também a bicha-solitária, i.e., a ténia.
EliminarE mais algumas coisas. Mas bicha de sete cabeças não.