Um dos paradoxos do estado atual dos meus projetos é continuar a pegar em livros que arranjei para ver se encontrava neles alguma coisa que tivesse interesse para o Bibliowiki, ao mesmo tempo que o próprio Bibliowiki se encontra parado por falta de tempo para lhe dedicar. E assim deverá continuar até que a atual carga de trabalho termine, em fevereiro.
Este 100 Livros Portugueses do Século XX, edição bilingue (português/inglês) do Instituto Camões, preparada por Fernando Pinto do Amaral, cujo objetivo foi apresentar a potenciais interessados estrangeiros a melhor ou mais relevante (no critério do autor, bem entendido) literatura portuguesa do século passado, foi um desses livros. Peguei nele para ver se encontraria aqui alguma obra que eu desconhecesse que podia interessar ao Bibliowiki, i.e., que podia integrar-se na literatura fantástica. E à parte as que já conhecia (de Saramago, por exemplo, ou de Branquinho da Fonseca) até encontrei, pelo que por esse lado esta leitura foi proveitosa. Resta saber é quando conseguirei traduzir isso em conteúdo de wiki propriamente dito.
Mas claro que aqui as ditas paraliteraturas (que são tão literaturas como as outras, mas deixem-nos lá brincar à sobranceria) não entram, entreabrindo-se apenas uma breve exceção à literatura infanto-juvenil. Nada de policial, nada de fantasia e quanto à ficção científica, então, nem pensar em tal coisa. Que só se perceba realmente a abrangência e variedade de uma literatura tendo em conta todas as suas facetas e as várias formas de criação literária que ela inclui nem passa pela cabeça de quem faz listas deste género. Sobre alguns autores menciona-se que estiveram ativos nos malfadados géneros, mas a obra que aqui se apresenta, obviamente, nada tem a ver com eles. Dinis Machado assinou ótimos livros policiais como Dennis McShade? Tá bem, mas o que interessa é O que Diz Molero. A Natália Correia escreveu contos de FC? Chhh... não falem disso que é pecado.
Outra coisa a que achei particular graça, especialmente envergando o meu chapéu profissional de tradutor, é a forma como se tenta promover certas obras sublinhando o seu caráter regionalista, em especial em termos de linguagem. É que se há coisa que não passa numa tradução são os regionalismos de linguagem. Porque uma tradução pressupõe sempre a alteração profunda da linguagem. Podem encontrar-se aproximações na língua de destino, truques para se fazer o leitor evocar alguma região do seu próprio espaço linguístico, na esperança de que isso o faça compreender o regionalismo do original, mas esses truques não passam disso mesmo. Nunca é a mesma coisa.
Diverti-me também com a forma como o autor apresentou os livros integrados na corrente do neorrealismo. Tudo (ou quase) é descrito como "esquemático", o que é uma maneira mal disfarçada de chamar a esses livros simplistas. A ideia que passa é que ele se achou obrigado a referir essas obras e autores, pela relevância que umas e outros tiveram na literatura portuguesa de meados do século, mas muito a contragosto e com grande ranger de dentes, provavelmente ideológico, que o neorrealismo é uma corrente artística de inspiração marxista e isso é palavra que, imagino por algumas frases que foi deixando aqui e ali, causará alguma indigestão ao autor.
Dito isto, este livro é útil. Não só para estrangeiros tomarem conhecimento com uma parte da literatura portuguesa do século XX, mas também para portugueses e não só para aqueles que pegam nele com o objetivo de alimentar um site bibliográfico, que provavelmente são um conjunto de um só. É uma visão do que é relevante que, apesar de assumidamente ser pessoal — o autor deixa-o explícito na introdução — é fruto das escolhas de alguém que está de tal forma mergulhado no pensamento literário dominante que na realidade pouco de pessoal aqui existe. São precisamente as escolhas espectáveis de alguém com o percurso de Fernando Pinto do Amaral e seriam as feitas, com pouquíssimas diferenças, por outro Fernando Pinto do Amaral qualquer. E isso marca um momento, não necessariamente da literatura portuguesa propriamente dita, mas com certeza do pensamento português sobre literatura. Caberá a cada um decidir se as acha relevantes ou não.
Se bem me lembro, descarreguei este livro em PDF do site do Instituto Camões, mas parece já não estar disponível.
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