quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Lido: A Princesa do Gelo (#leiturtugas)

Manuel João Vieira é um destrambelhado profissional. Construiu uma carreira, já longa, com base nisso, e em todas as facetas da sua carreira parece fazer questão de destrambelhar. Não tem necessidade de destrambelhar, note-se — eu já o vi a falar a sério, e é perfeitamente capaz de o fazer com lucidez e coerência — mas além do óbvio gosto em ser enfant terrible até à cova, parece sentir que é o que dele se espera.

Não sei bem se terá razão nisso.

Sendo o autor um destrambelhado profissional, fácil se torna concluir que este A Princesa do Gelo, um conto de fantasia surrealista sobre uma expedição ao polo norte em busca da princesa do gelo do título, que habitaria uma ilha que aparece e desaparece conforme lhe apetece, é profissionalmente destrambelhado.

Tem alguns elementos de um certo experimentalismo, nomeadamente o facto de apresentar um texto entrecortado, com partes em falta — o que está longe de ser inédito ou novo, mas não é muito frequente — tem umas piscadelas de olho à forma de escrever dos autores de ficção científica e da literatura de viagens do século XIX — de resto, o texto é atribuído a um tal Júlio Verne, não sei se conhecem — mas tudo com aquela forma destrambelhada de escrever e de estar que é imagem de marca do autor.

Em parte, é essa a sua maior falha. O humor que o destrambelhamento poderia trazer é menor do que poderia ser, o que não impede que o texto fique com um certo ar de coisa gratuita e superficial, sem grande interesse. A atribuição do texto a Júlio Verne não traz consigo um verdadeiro esforço para a tornar credível, pois não existe propriamente uma adaptação estilística à forma de escrever do francês, Vieira fica-se pelas piscadelas de olho. E isso faz com que o conto não seja lá muito bom.

Pela outra face da moeda, tem alguns detalhes bem conseguidos, uma qualidade literária que, apesar de algo irregular, tem momentos de elevação, e é inegavelmente imaginativo. Com um pouco menos de destrambelhamento — ou com um destrambelhamento mais controlado — e com um pouco mais de trabalho, esta poderia ser uma história realmente boa. Assim, creio que não passa de razoável.

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