quinta-feira, 12 de setembro de 2019

John Updike: A Outra Vida

Seria certamente em histórias como esta que Tzvetan Todorov estava a pensar quando centrou na dúvida entre a natureza natural ou sobrenatural de acontecimentos literários a sua definição de fantástico. É que é precisamente essa dúvida que está subjacente a esta história de John Updike.

Começa logo pelo título, ainda que aqui a tradução portuguesa ponha um pouco de aditivos na dúvida. A Outra Vida é e não é tradução fiel do The Afterlife original, que remete mais diretamente para a vida após a morte, sendo o título português mais ambíguo. Curiosamente, isso não é propriamente desadequado para a história que Updike conta.

A história gira em volta de um casal americano que decide ir passar uns dias com uns velhos amigos que se tinham mudado para Inglaterra alguns anos antes. E a princípio é uma história perfeitamente banal sobre pessoas que procuram reatar uma amizade posta em perigo pelo tempo e a distância e se confrontam com o facto de os amigos já não serem exatamente as pessoas que recordam. Mas depois, o marido cai de umas escadas.

A partir desse momento, a história toma um tom diferente. A queda é resolvida sem consequências, mas Updike não perde uma ocasião para fazer lembrar ao leitor a improbabilidade dessa ausência de consequências, deixando nas entrelinhas que na verdade houve consequências e o homem já não está propriamente vivo, antes existe numa espécie de limbo, ou de sobrevida, provavelmente fantasmagórica. Isso só se amplifica com o desenvolvimento da história: por exemplo, a páginas tantas os dois casais vão passear, cai sobre a zona uma violenta tempestade e eles escapam-se por uma unha negra e muita sorte a uma série de acidentes. Ou será que não se escaparam? Ou será que na verdade morreram todos nalguma das várias ocasiões propícias a isso e agora não passam de reflexos fantasmagóricos do que foram antes?

É um truque estilístico que é usado para mais do que a mera sugestão de fantástico, a qual, na verdade, me parece quase mais acidental do que propositada. A ideia é levar à reflexão sobre quem somos realmente, sobre até que ponto a nossa identidade é constante, até que ponto é alterável pelas circunstâncias da vida. Ao aludir à fantasmagoria, e ao reforçar a alusão com a estranheza de os velhos amigos estarem tão diferentes, Updike pretende dizer, julgo eu, que no fundo todos somos fantasmas de quem fomos em tempos e que, por mais que nos sintamos fundamentalmente os mesmos, na realidade o tempo nos altera de formas tão profundas que passamos a ser outras pessoas, a viver outras vidas. Não sei bem se concordo com esta ideia, mas o conto é inteiramente eficaz na sua transmissão. Este é um conto bastante bom.

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