É um deprimente espelho da época que vivemos que este conto de Connie Willis seja, de longe, a mais atual de todas as histórias contidas no início deste número da IAM e provavelmente também a mais atual de todas as que ainda faltam para o acabar. Muito Barulho Por Nada (bibliowiki), um título que remete imediatamente a Shakespeare e à sua peça Much Ado About Nothing mas está longe de ser uma boa tradução do título original, Much Ado About (Censored), é um texto de ficção científica satírica sobre o que se perde com a estupidez da censura social.
A protagonista do conto é uma professora de literatura que se prepara para dar Shakespeare aos seus alunos. Mas primeiro tem de passar vários dias a fazer trabalhos preparatórios. Que trabalhos preparatórios?, perguntarão. Estudar o que houver a ser estudado sobre o dramaturgo inglês a fim de melhor conseguir transmitir a sua essência aos alunos?, sugerirão. Não. Nada disso.
Remover tudo o que nas suas peças tivesse sido considerado ofensivo por alguém. Incluindo peças inteiras.
E decididamente não falta gente que se ofende com coisas. Um Movimento Nacional Contra Frases Interrogativas censura todas as frases que o sejam, uma Comissão para a Prevenção de Envenenamentos censura o envenenamento do pai do Hamlet por poder levar desequilibrados a fazer o mesmo, a Frente de Libertação da Mulher censura qualquer frase e personagem que possa trazer alguma sugestão de machismo, o Conselho Nacional de Cutelaria censura tudo o que possa sugerir que as espadas são perigosas, e etc., e por aí fora, e mais grupos e grupelhos a censurar isto e aquilo e aqueloutro.
Soa-vos familiar?
Pois.
O resultado de tanto corte é o que seria de esperar: a destruição completa da obra. E é essa a mensagem: a censura nunca é inócua. Tem sempre efeitos que vão muito para lá daquilo que se pretende suprimir, e legitima que outros grupos, com interesses diferentes, utilizem as mesmas táticas. Censurando, abrimos as portas a também nós sermos censurados. Sim, este conto é uma sátira de FC. Mas também é uma história profundamente política sobre algo muitíssimo relevante para os tempos que correm e para a nossa vida em sociedade. Boa FC, portanto. E também divertida e amarga. Connie Willis no seu melhor.
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